Um confuso ruído

Com poucas modificações, o texto a seguir saiu nas notas de programa da OSESP em novembro, a propósito da inclusão da Fantasia em Fá Menor, op.18 de Tchaikovsky (“A Tempestade”) no repertório. Ricardo Teperman conta que os concertos, sob a batuta de Celso Antunes, foram lindos
Estar na periferia tem suas vantagens. Longe do centro, descortinamos aquilo que os que lá estão jamais veriam.
A Rússia do século XIX é um exemplo clássico de distanciamento. Nela, a tensão com a Europa ocidental e a admiração por sua cultura erudita acionam teclas díspares: ora o desejo de parecer-se a Paris, ora a vontade de percorrer as raízes eslavas. Do dilema insolúvel surge a melhor literatura, assim como nasce a música de Tchaikovsky (1840-1893).
O poema sinfônico A Tempestade foi composto em 1873, numa casa de campo em Tambov, logo após viagem a França, Itália e Suíça, onde o musicista escreve, em seu diário: “minha alma sofre a falta da Rússia e quando vejo suas planícies, campos e florestas, sinto meu coração contrair-se”.[1] No entanto, entre a paisagem familiar e o mundo vasto, Tchaikovsky não canta os sabiás de sua terra. Antes, decide enfrentar mais uma obra de Shakespeare.
Em A tempestade, Próspero, duque de Milão deposto pelo irmão, experimenta degredo fantástico numa ilha desconhecida. Por meio de sortilégios, e auxiliado por Ariel, gênio do ar, ele governa a ilha remota como um tirano ilustrado, ameaçado por Caliban, o “escravo selvagem e disforme” que quer violar sua filha Miranda. Escrita em 1611, a peça é um poderoso comentário do encontro da América: trazendo da Europa magia e ciência, o colonizador vela sua criatura, exposta ao apetite do canibal. O teatro do mundo incluía agora uma terra incógnita a explorar, econômica e espiritualmente.
Influenciado por Erasmo e Montaigne, em A TempestadeShakespeare inaugura uma linhagem humanista capaz de interpelar os horrores que o avanço civilizador nem sempre logra esconder. Inseparáveis como a carne e a alma, Caliban e Ariel seguiriam inspirando artistas mundo afora: na América Latina de Rodó, no Caribe de Aimé Césaire e George Lamming, na poesia de W.H. Auden, no cinema de Greenaway etc. Entretanto, no momento em que Tchaikovsky compôs A Tempestade, a dupla Ariel-Caliban não fora ainda consagrada pela pena de Renan, para quem, após a Comuna de Paris (1871), Caliban simbolizará o experimento democrático que o conservador teme, sempre que o vândalo se materializa nas ruas.
Na Rússia czarista, as batalhas de Tchaikovsky eram outras, deflagradas na forja de uma música que deveria responder tanto aos anseios do mundo quanto à vocação da terra. A sugestão de compor sobre tema shakespeariano vem de Vladimir Stasov, companheiro de Mily Balakirev, contemporâneo de Tchaikovsky em São Petersburgo e líder do Grupo dos Cinco (que incluía Mussorgsky, Cui, Rimsky-Korsakov e Borodin). Ele mesmo autor de uma abertura Rei Lear, Balakirev descende do nacionalismo de Mikhail Glinka, que compusera ópera baseada num poema de Pushkin. Glinka, por seu turno, foi próximo de Berlioz, inspirador dos Cinco e compositor de diversas peças shakespearianas. Quando Berlioz excursionou pela Rússia em 1867, o jovem Tchaikovsky, já professor no Conservatório de Moscou, fez-lhe uma homenagem em francês. Pelos galhos do romantismo que vicejara na Paris de Stendhal, Hugo e Delacroix, Shakespeare viajava à Rússia do século XIX para lá frutificar, como aliás fizera e seguiria fazendo: em Verdi, em Dvorák, em Machado de Assis…
Para além de Shakespeare, contudo, a mescla de música e literatura alimentava um debate longevo na história da arte: o que a música é capaz de produzir? Pode ela contar histórias, mesmo quando se abstém da palavra? Mas o sentido que o verbo ata não é de todo externo à música? Ou, por abstrata, a música tudo pode?
Tchaikovsky encarece a noção de que, apesar de seu caráter não denotativo, a música oferece uma paisagem emocional que, muito além do entretenimento, exige do ouvinte profunda elaboração como a literatura, aliás. Se o leitor suspeita que a narrativa esconde outras narrativas, em sucessão quase infinita, o ouvinte sente a matéria escutada ressoar em sua própria paisagem interior, a despeito das aves que ali gorjeiem. Não à toa, esse complexo mecanismo de arrebatamento poético e de transmissão de sentimentos, assim como a “profundidade” que lhe dá sentido, tem nos românticos seus melhores intérpretes.
Para ouvidos já escaldados pelos experimentos pós-românticos, haverá sempre algo “exagerado” em Tchaikovsky, seja na maneira como o tecido musical de repente se avoluma, seja na dramaticidade dos torneios melódicos, seja ainda na percussão, raras vezes tão requisitada quanto aqui. Basta porém que nos fixemos no quadro da sensibilidade romântica, para que a emoção nos tome, assim como tomou os contemporâneos de Tchaikovsky, que em 1873 receberam A Tempestade com um júbilo que faltara em 1869, quando estreou em Moscou a abertura-fantasia Romeu e Julieta, sua primeira obra inspirada em Shakespeare (Hamlet só viria à luz em 1888). Retrabalhada após a estreia decepcionante, Romeu e Julieta é hoje um hit, enquanto A Tempestade ficou na sombra. Mas ao ouvinte atento não escaparão as semelhanças temáticas entre elas, assim como não passarão em branco as tintas wagnerianas que dão espessura a momentos-chave da composição.
Recordando a gênese de A Tempestade em carta a Mme von Meck, Tchaikovsky fala dos passeios solitários pelo campo, e das noites em que se punha à janela, a ouvir “o profundo silêncio dos grandes espaços, rompido de quando em quando por um confuso ruído à distância”.[2]O tópos romântico anuncia o estado de alma a que seremos transportados na paisagem sonora da peça. Inadvertidamente talvez, o compositor reproduzia a exortação de Próspero: “Não tema, a ilha está repleta de ruídos”.
Tchaikovsky seguiu à risca o programa de Stasov para A Tempestade: O mar/ Ariel, obedecendo a Próspero, cria uma tempestade/ Naufrágio do navio que conduz Ferdinando [príncipe de Nápoles]/ A ilha encantada/ Primeiros laços de amor entre Ferdinando e Miranda/ Ariel/ Caliban/ O casal se rende à paixão/ Próspero desfaz-se da magia e deixa a ilha/ O mar.
Cabe ao ouvinte mergulhar palavra que, considerado o poder sinestésico em jogo, assume conotação múltipla — no “mar” em que se abre o poema sinfônico, quando flautas e madeiras fazem sentir o ritmo da navegação e deixam ver a superfície plácida, logo mais crispada pelas cordas. Enquanto a tuba introduz a nota dramática, os contrabaixos nos puxam para o fundo, e seguimos com a nau que conduz os personagens à ilha de Próspero. É o momento em que Ariel, instruído pelo mestre, produz a tormenta que os trará à costa. É também o instante em que a marcha graciosa do espírito será interrompida pelo nervosismo das cordas e dos sopros, até a entrada ribombante da percussão, anunciando a tempestade. O ouvinte dirá se as estepes não são também morada do espírito, e se o Ariel de Tchaikovsky não é quase já o Petrushka de Stravinsky…
Anuncia-se então, contagiante, o tema de amor que une Ferdinando e Miranda, até que surja novamente o gênio ligeiro e gracioso de Ariel. O aparecimento de Caliban se dá num stringendo aterrorizante, uma confusão medonha de timbres, que dura o instante do pânico, até que o tema regresse e, aliviados, retomemos o passo que levará os amantes ao êxtase. Por fim, Próspero encerra, sobranceiro e marcial, seu papel de condutor. Eis então de volta o mar que, desfeito o encanto, recobre o sonho em que mergulhamos.
Os leitores de Shakespeare sabem que os atores do grande drama são espíritos que se desfazem no ar, e que a matéria que se acreditava motivo de glória se desmancha, restando apenas a outra, “matéria tal/ de que os sonhos são feitos; e nossa pequena vida/ está rodeada pelo sono.”
A tradução é livre, mas permite lembrar que, para além da lenda-Tchaikovsky (o neurastênico, o homossexual, as suspeitas em torno de sua morte), está o momento original em que, na província, afastado de tudo, ele se vê cercado pelo Nada que os românticos temem e veneram, porque os obriga a habitar o espaço fugidio dos limites. Tal é o momento em que, debruçando-se sobre a noite infinita, ele ouve o confuso ruído das estepes, que nem o sono nem a morte ousarão levar.
Bibliografia
Leon Botstein. “Music and the Language of Psychological Realism: Tchaikovsky and Russian Art” in Tchaikovsky and his World. Org. Leslie Kearney. Princeton: Princeton University Press, 1998.
Lawrence e Elisabeth Hanson. Tchaikovsky: a new study of the man and his music. Londres: Cassell, 1965.
William Shakespeare. The Tempest. Org. Peter Hulme e William H. Sherman. Nova Iorque: Norton, 2004.
Herbert Weinstock. Tchaikovsky. Nova Iorque: Da Capo, 1980.

 

 

 

 



[1] Herbert Weinstock. Tchaikovsky. Nova Iorque: Da Capo, 1980, p.92.
[2] Ibidem.