The Future of Democracy/O futuro da democracia
I was interviewed by Luiz Eduardo Garcia da Silva for the BRaS blog about the future of democracy in Brazil. The interview in English can be read here.
Segue a entrevista em português. Agradeço a Luiz Eduardo Garcia da Silva, Anna Paula Bennech, Cláudia Pires e Giovanna Imbernon. A entrevista foi feita por e-mail em fevereiro de 2021.
Muito se fala sobre as “promessas não cumpridas” da República Brasileira e a incompletude do ciclo da construção de cidadania. Ainda hoje, é possível verificarmos que o Brasil é uma “República que não foi” ou então uma “democracia incompleta”. Nesse sentido, como o senhor vê o atual momento da política brasileira e o que se pode dizer em relação a uma sociedade que, desde as jornadas de 2013, apresenta-se cada vez mais com feições ultraconservadoras, ilustradas pela eleição de Jair Bolsonaro em 2018?
É difícil ser otimista e acho que Millôr estava certo quando dizia que o Brasil tem um “longo passado pela frente”. Aliás, Carlos Heitor Cony dizia que “o otimista é apenas um sujeito mal informado”. Para além das boutades, penso que temos uma situação apavorante hoje no Brasil. Quando a ex-presidente Dilma Rousseff nos visitou em Princeton, no ano seguinte ao golpe parlamentar que a destituiu, ela disse algo interessante sobre o aumento generalizado do poder de consumo durante a era Lula: segundo ela, as pessoas desejam, e desejam sempre mais. Ou seja, o impulso econômico gerou um conjunto imenso de expectativas a que a década passada não conseguiu, ou talvez não pudesse responder. É claro que não se trata de uma mecânica simples, como se a demanda por bens de consumo pudesse explicar tudo. Mas creio que o ponto zero do desvio autoritário que estamos vendo hoje no Brasil foi o encontro da agenda moral com a insatisfação econômica. No plano moral, estão a (justa) revolta contra a corrupção e a demonização do PT; no plano econômico, a insatisfação foi capitalizada por uma agenda regressiva, que vê os direitos adquiridos durante a redemocratização como espúrios. É uma equação complexa, que aqui estou resumindo muito. Mas acho que é possível dizer que o ovo da serpente está aí, na manipulação do ressentimento das pessoas. Paradoxalmente, as conquistas do período democrático acabam sendo vistas como culpadas pelo descalabro econômico e pela falência do futuro.
As décadas de 1920 e 1930 configuram um momento específico em que muitos autores se desafiaram a explicar o Brasil – os chamados “Intérpretes do Brasil”. Período de construção do Estado nacional, havia uma disputa de narrativas sobre qual seria o melhor caminho para se chegar à modernidade, sendo esta entendida de diferentes formas. Atualmente, vivemos um momento político crítico, de realinhamento de forças políticas e de desgaste do regime democrático. Quais as novas matrizes teóricas dessa nova onda de intérpretes do Brasil (Jessé Souza, Lilia Schwarcz, Leonardo Avritzer, Luiz Eduardo Soares)?
Eu somaria, à lista dos atuais “intérpretes do Brasil”, artistas como Emicida, Adriana Varejão ou Chico Buarque, e escritores como Djamila Ribeiro e Silvio Almeida. O ensaísmo das décadas de 1920 e 1930 ganhou novas formas, isso é certo. Um documentário-aula-concerto como “AmarElo”, de Emicida, é um grande feito “hermenêutico”, para usar um termo filosófico. Com Emicida, podemos compreender uma vasta dívida histórica, por meio da visibilização daquilo que, há cem anos, era visto como uma herança a ser superada, isto é, as mazelas da escravidão que permanecem na República. O ponto pacífico de todas as interpretações, mesmo que ele não se verbalize desta forma, é que depois da Abolição, em 1888, o corpo escravo foi jogado na praça pública sem que uma rede de direitos o acolhesse. Por isso a urgência, hoje, de passar a limpo a fábrica de mitos que projeta o Brasil como um paraíso pós-racial. É indecoroso defender essa tese hoje em dia, mas é sintomático que o atual governo federal o faça, como se pode escutar em declarações do Presidente e de seu Vice. Mas a ignorância orgulhosa dos bolsonaristas e o baixo nível mental e retórico do Presidente da República não nos deve enganar. Em meio às trapalhadas dos ministros-generais e à incompetência crônica dos membros do atual governo, há um plano que vai sendo executado surdamente: a desmontagem da rede de direitos conquistada na redemocratização. O fato de que o Presidente seja um nostálgico da ditadura é por demais significativo. Isso está nas análises dos quatro intelectuais que você cita. Dentre eles, creio que Luiz Eduardo Soares é quem talvez mais perto chegue de um problema que me parece central para a interpretação do Brasil contemporâneo: a importância e o crescimento dos movimentos evangélicos. Esses movimentos são plurais, evidentemente, mas o recrudescimento da agenda moral, bem como a difusa teologia da prosperidade que a sustenta, têm muito a ver com o avanço dessa agenda que, assim como os intérpretes que você cita, eu vejo como fundamentalmente regressiva. Ou seja, talvez o próximo “Raízes do Brasil” tenha que ser um enfrentamento profundo e novo da questão evangélica no País. Penso que é só por aí que poderemos captar as correntes profundas de uma mudança que está em curso e que envolve enormes parcelas de uma população historicamente alijada de direitos, e que reencontra um sentido de comunidade na igreja. Para voltar a Emicida como intérprete da coletividade, não é por acaso que o tom de sua leitura do Brasil seja abertamente messiânico. Há algo muito profundo aí, que ainda temos que investigar.
A constituição e a manutenção de clãs políticos que se arvoram nas instâncias de poder, bem como a dificuldade na cisão entre o público e privado, entre Estado e a família, são desígnios que caracterizam as gestões políticas no Brasil. Sérgio Buarque descreve o homem cordial como um sujeito que possui “o desejo de estabelecer intimidade e o horror a qualquer convencionalismo ou formalismo social”. Estaríamos vendo a materialização fiel do homem cordial na Presidência da República?
Completamente. Eu tenho dito com todas as letras em minhas palestras sobre Sérgio Buarque de Holanda: a família Bolsonaro é a quintessência da cordialidade. Não se trata mais de simples “confusão” entre o público e o privado. Temos agora um projeto que torna o aparato representativo da democracia liberal totalmente obsoleto. Sabemos que não se trata de um fenômeno exclusivamente brasileiro, mas o autoritarismo, como o estudou Lilia Schwarcz, tem raízes profundas na prática personalista que torna as máscaras da representação política desnecessárias. O tom “descontraído” e frequentemente mal-educado de Bolsonaro curiosamente cria uma conexão profunda com largas camadas da população, que se veem representadas por ele, ou nele. Há nisso também um ressentimento e uma ojeriza pela fala melíflua dos intelectuais, o que é um problema fascinante. Há também esse fenômeno paradoxal que são as mulheres que adoram um líder misógino. Bolsonaro solta as travas da civilidade e deixa solto o monstro que todos temos em nós. Isso é a falência do pacto político, que pressupõe a contenção do impulso individual e a construção de um horizonte coletivo. Ou seja, exatamente aquilo que se postulava — um tanto confusamente, é verdade — em Raízes do Brasil: com o homem cordial, não há futuro possível.
O Brasil tem consistentemente vivido momentos turbulentos. Conflitos sociais, violência policial nas periferias, aumento da desigualdade econômica, a questão racial reemergindo. Paralelamente, observamos o crescimento de segmentos sociais afeitos a ideologias ultraconservadoras e retrógadas. Podemos dizer que o Brasil abdicou de seu caminho rumo à modernidade não apenas no sentido de desenvolvimento econômico, como também no quanto aos valores e às práticas comuns compartilhadas (democracia, imparcialidade jurídica, republicanismo, solidariedade)?
Infelizmente acho que sim, que há uma abdicação do futuro nas práticas políticas atuais no Brasil. A condução da pandemia é um sinal gritante de que o futuro republicano está sendo rifado. Quando o Presidente diz “e daí, who cares?”, ou quando diz que todos vão morrer mesmo, ele está dando voz a um sentimento incrustado no ser humano, que a civilização deveria conter. Acho que é uma questão mais que simplesmente política, porque ela tem a ver com a natureza humana. Ou seja, não se trata apenas da implementação desta ou daquela política pública, mas sim de uma batalha pela conquista da alma, e sem essa alma não há democracia nem republicanismo. O papel da religião aí é complexo, e é por isso que eu dizia há pouco que os movimentos evangélicos são plurais. Penso que a agulha do futuro ainda pode apontar para a solidariedade, mas isso depende de como vai se jogar esse horizonte “evangélico” no xadrez político. Acho que o grande “asset” da política hoje no Brasil são as grandes comunidades evangélicas. Isso é desconfortável para quem, como eu, defende um horizonte laico para a esfera pública. Mas as esquerdas terão que se haver com esse casamento impossível das demandas mais progressistas com o lastro conservador que orienta parte importante da “alma brasileira”. Ou a esquerda resolve essa equação, ou a batalha está perdida, como aliás acontece agora no Brasil. Já a imparcialidade jurídica é um capítulo à parte, que para ser entendido teria que contemplar, segundo penso, não só esses valores regressivos que vão ganhando terreno inclusive no STF, mas também a espetacularização da Justiça. A Lava-jato é incompreensível sem a mobilização midiática através da qual a Justiça se tornou uma máquina de fazer política. Não são mais os “checks and balances” que estão em questão, como num bom sistema democrático. A Justiça é uma espécie de instância suprema, como se o Juízo Final pudesse vir dali. E talvez venha, um dia.
Expressões como “de 15 em 15 anos o Brasil se esquece dos últimos 15 anos” (Ivan Lessa), ou “o Brasil tem um enorme passado pela frente” (Millôr Fernandes) indicam que a sociedade brasileira possui uma incapacidade de resolução e rememoração dos entraves sociais que compõem nossa trajetória histórica. Exemplo, diferentemente de outros países da América Latina, o Brasil nunca julgou os crimes cometidos durante a ditadura militar. Ou então, a despeito dos séculos de escravidão e de todas as consequências que até hoje impactam diretamente a sociedade brasileira, muitos ainda negam a existência do racismo no Brasil. Por qual razão existe esse tabu de parte dos brasileiros em confrontar seu passado?
É uma pergunta difícil e importante. Parece até uma questão metafísica: qual é o “ser” do Brasil, que nos leva insistentemente ao passado e não nos deixa avançar? Os ensaios das décadas de 1920 e 1930, de que falávamos acima, deram respostas variadas a essa questão. Mas para todos eles o problema era o que fazer com o passado, como agenciá-lo, ressignificá-lo, superá-lo (como queria Caio Prado Jr.) ou conservá-lo nas suas supostas qualidades (como queria Gilberto Freyre). Acho que o caminho é a conscientização sobre o passado, sem mitificá-lo. Precisamos de menos heróis e mais processo social. Os liberais de cem anos atrás pregavam uma cruzada educativa como solução para todos os males. Talvez ela seja insuficiente, mas o fato é que só entendendo o passado poderemos superá-lo. É claro que essas cruzadas educativas são inúteis e se tornam patéticas diante da força das imensas bolhas de fake news, que são propagadas e consumidas sem nenhuma vergonha. Mesmo assim, é preciso falar do passado e aprender a mexer com ele. Quando uma pessoa deita no divã do analista, ela aprende a mexer com seu próprio passado para não ser mais refém dele. O passado nunca vai embora, mas é possível tê-lo como trampolim para outra coisa. É claro que, com toda a desigualdade que há no Brasil, a mudança não pode ser apenas mental. Não se vai para frente apenas com o cérebro. As estruturas mentais e sociais são iníquas, e livrar-se delas leva muito tempo. Talvez eu seja otimista, mas não sei se sou apenas uma pessoa mal informada… Como dizia Kafka, há esperança, só que não para nós.