Sobre os vândalos
O texto abaixo, escrito no calor da hora por Leonardo Pereira, é das coisas mais lúcidas que li, em meio ao tiroteio de ideias e emoções dos últimos dias.
Como centenas de milhares de cariocas, estive na passeata da Presidente Vargas na última quinta-feira. Vi lá jovens que comemoravam a vitória do movimento da meia-passagem, e redimensionavam seus alvos: não só os 20 centavos, mas o problema do transporte público no Rio de Janeiro e seu financiamento. Vi também grupos que somavam a esta reivindicação inicial outras causas – como a melhoria na educação e na saúde, o combate ao preconceito, ou mesmo o genérico grito contra a corrupção. Mas o que mais me impressionou foi ver, nas ruas paralelas à Presidente Vargas, separados do fluxo principal dos manifestantes, dezenas de jovens que não caminhavam como o resto da multidão. De perfil diverso daqueles da Avenida, eles tinham os rostos cobertos por camisetas velhas, com tipos físicos e expressões corporais nas quais era possível inferir as dificuldades de uma vida de carência. Parados em pequenos grupos, respiravam de forma funda e concentrada, como se estivessem à espera de um enfrentamento que ainda estava por vir.
Impressionado com a cena, saí cedo de lá sem compreendê-la. Ao chegar em casa, no entanto, reencontro na televisão aqueles jovens e seus pares. Em cenário de guerra, estavam agora em choque com uma polícia despreparada em frente ao prédio da prefeitura. Pouco depois os revejo em São Paulo, destruindo agências bancárias sem nenhum motivo aparente; em Belém, onde tomaram o Palácio Antonio Lemos por alvo; na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, a atear fogo no Itamaraty. Em todo lugar onde houvesse uma manifestação, lá estavam os mesmos jovens que eu havia visto na manifestação do Rio – aquela mesma cujos participantes tinham como único ponto em comum o grito de “sem violência”.
Em reportagens que celebravam a força das manifestações pacíficas, ordeiras e cívicas, a imprensa tratou de definir aqueles jovens: eram os “vândalos”, baderneiros que se aproveitavam do protesto para fazer arruaça. Mesmo a Presidenta Dilma, em seu pronunciamento, tratou de isolá-los do resto da multidão, vendo neles simples “arruaceiros” que deveriam ser reprimidos com força. Situados de fato nas margens da passeata, era como marginais que passavam a ser tratados – em lógica que tratava de explicar as violências que patrocinavam pela propensão à delinquência ou pela irracionalidade.
Logo me dei conta de que não era a primeira vez que a imprensa brasileira julgava desta forma ações e movimentos cuja lógica não conseguia compreender. Foi como vandalismo ou arruaça que foram tratados, por exemplo, os atos de boa parte daqueles sujeitos que em 1904 participaram da chamada Revolta da Vacina. Para combater a vacinação obrigatória no Rio de Janeiro, grupos de populares descontentes passaram na ocasião a destruir lampiões, atacar agentes públicos, virar bondes. Para os grandes jornais e políticos do tempo, era a prova da ignorância dos arruaceiros, já que a vacina seria para eles um benefício. Analisados atualmente pela lente da História, entretanto, tais atos guardam uma racionalidade clara: era contra os símbolos de um Estado incapaz de compreender suas visões de mundo que se voltavam então os manifestantes, na defesa de suas próprias formas de combate à doença.
Igualmente definido parece o foco desses novos “vândalos”. Ao se voltar contra a polícia que faz rotineiramente de gente feito eles as vítimas preferenciais de seu arbítrio, contra os ônibus nos quais se apertam cotidianamente para chegar ao trabalho ou contra as grandes corporações que atacam de forma sistemática seus direitos de consumidor, sua violência parece ter alvos definidos. Se não entendemos sua mensagem, é porque não é pela via da política e do diálogo que ela se expressa, e sim da ação – uma ação explosiva e violenta, capaz de gerar mais medo do que reflexão.
Insistindo em pensar os atos desses sujeitos à margem da onda do protesto e revolta dos outros grupos sociais que compuseram passeatas como aquela, perderemos mais uma vez a chance de compreendê-los. Se no caso da Revolta da Vacina tal incapacidade de compreensão resultou em novas epidemias que vitimaram milhares de pessoas, agora o perigo pode ser ainda maior. Em um movimento que tem nos poderes constituídos e na classe política seus alvos principais, é a própria democracia que está em jogo. Já é hora assim de transformarmos o que é atualmente um caso de polícia em um tema de política – deixando de ver nos atos desses “vândalos” simples manifestações irracionais de violência e incivilidade para tentar entender a mensagem que eles tentam passar. Por mais que, como sugere Drummond, seja “difícil compreender o que querem esses homens, por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão de seus sofrimentos”.
Leonardo Affonso de Miranda Pereira, 45, é Professor Associado do Departamento de História da PUC-Rio e autor do livro Barricadas da Saúde: vacina e protesto popular no Rio de Janeiro.