Salve a Lapa, dane-se o supermercado
A vantagem de ler coisas diversas ao mesmo tempo é grande. Desconfio que o leitor se veja instado a imaginar relações onde não haveria nada em comum, não fosse o momento fortuito que o levou a abrir dois livros diferentes e lê-los em paralelo.
De um lado, penso no magnífico romance de Don DeLillo, White Noise, de 1985; de outro, nos contos tocantes de João Antônio. Mas que diabos haveria de comum entre eles?
Nada, em princípio. No entanto, fica a pergunta: não há, em DeLillo e em João Antônio, a capacidade de erguer um mundo imaginário, um espaço cerrado, que termina por condensar, no plano da ficção, aquilo que cada um dos autores mais teme ou admira? Há sinais contrários, é claro. De um lado, o ambiente mundano (a boêmia carioca, a velha e idealizada Lapa, os botequins e a indefectível malandragem na sinuca) ganha todo o afeto de João Antônio, que é um escritor de ruínas urbanas, um amante do bas-fond e de seus personagens. De outro, DeLillo é capaz de cifrar, numa pequena descrição de um supermercado numa cidadezinha do meio-oeste americano, um universo que, ao contrário dos bares de João Antonio, não tem graça alguma, ou seja, nada mais é que um mundo de criaturas envelhecidas e confusas, reconfortadas apenas pelo apelo higiênico das mercadorias brilhantes, enfileiradas e prontas para o consumo.
Por que em João Antônio há um mundo encantado (ainda que o encanto seja contrabalançado pela tragédia iminente dos desvalidos), e em Don DeLillo tudo leva ao mais puro desencanto?
Ambos, no fundo, têm um mesmo alvo: a malha de esperança e desesperança tecida a partir da experiência suburbana. Mas por que num caso (João Antônio) a desesperança é encantadora, e noutro (DeLillo) ela é simplesmente desesperadora? Estaremos falando de mundos irreconciliáveis?
Abrir livros em paralelo é sempre bom.