O que somos?

Talvez se deva assim compreender o bebê que nasce com seu primeiro grito como sendo ele mesmo – seu ser ou sua subjetividade – a expansão repentina de uma câmara de eco, de uma nave na qual ressoa a um só tempo aquilo que o arranca e aquilo que o chama, pondo em vibração uma coluna de ar, de carne, que soa em suas embocaduras: corpo e alma de um qualquer-um novo, singular. Um que vem a si ouvindo-se dirigir a palavra tanto quanto ouvindo-se gritar (responder ao outro? chamá-lo?), ou cantar, sempre cada vez, sob cada palavra, gritando e cantando, exclamando-se como ele fez ao vir ao mundo.

A passagem acima é uma tradução, temerária, de um momento do maravilhoso À l’écoute, de Jean-Luc Nancy. É engraçado, porque o livro todo é uma guerra surda (perdoe-se-me o trocadilho) contra a ideia de um “ser” anterior ao som – um ser que emergiria de uma pura negatividade. O “ser” da metafísica, em suma.
Mas… ao gritar contra (ou com?) a metafísica, resta o momento desse nascimento, quando vem ao mundo a câmara sonora que todos somos, e então resta uma pergunta lancinante, discreta, profunda: de onde vem a primeira vibração que nos põe a vibrar até a morte? Não encontro outra forma de dizê-lo: c’est le miracle. Mas a leitura de Nancy admite (alcança, ou escuta) o milagre?
PS. Agradeço a Enea Zaramella, que há tanto tempo vem à l’écoute.

1 Comment

Join the discussion and tell us your opinion.

Kelvin Falcão Klein
November 5, 2010 at 17:32

Professor Pedro,
penso que esse gritar com/contra a metafísica tem muita relação com a auto-imunidade de que fala Derrida: a tarefa de tornar o impossível possível, sem expulsar o impossível; combater os monstros da razão com as ferramentas que ela oferece; a responsabilidade interminável (o cuidado com a família é sempre a negligência com outra, alhures), etc.
Grande abraço,
Kelvin.