O murmúrio e a perda: Paisagem com dromedário

O texto abaixo saiu na revista do Memorial da América Latina, e lá está disponível em português e espanhol.
Uma linha imaginária nos separa, a nós que flutuamos orgulhosos na ilha Brasil, dos vizinhos hispano-americanos. A ideia de “pular Tordesilhas” e lançar um olhar abrangente sobre a América Latina não é nova, e vem ganhando fôlego ultimamente. Exemplos não faltam.
Que se pense no eixo Buenos Aires-São Paulo-Rio, fortalecido em torno da revista Grumo, em que se juntam críticos e escritores como Diana Klinger, Mario Cámara ou Paloma Vidal. Ou então, apontando para o Caribe, penso no canto de Marina de la Riva, onde Cuba e Brasil se enlaçam e dizem, um ao outro, a que vêm e de onde vêm suas tradições musicais.
Significativamente, tais cruzamentos provêm sobretudo de emigrados, de gente que se situa num “entre-lugar”, como o chamou Silviano Santiago: nem cá nem lá.
Paisagem com dromedário (Companhia das Letras, 2010), da escritora chileno-brasileira Carola Saavedra, surpreende um destes cruzamentos. Há, no romance, um tópos da literatura latino-americana: uma máquina, ligada, conta uma história.
Em 22 “gravações”, a narradora entretece sua voz lutuosa aos sons circundantes, numa ilha extrema em que a solidão é posta à prova, e em que a distância intransponível dos entes queridos faz com que qualquer sentido se esvaia. Momento em que a voz tende ao murmúrio, escorrendo como água límpida para passar ao largo de qualquer explicação, lançando perguntas sem sequer arranhar uma resposta. (O tema da separação já dera o tom do romance epistolar Flores azuis, de 2008.)
Em certo momento da narrativa, uma provocação é lançada àquele que escuta: quem sabe se, ouvindo os sons a que se sobrepõe a voz gravada, possamos, como numa história de detetive, descobrir o sentido de tudo, mapear o espaço e os desígnios de quem fala? No entanto, a ausência de sentido ressoa, baixo como um ruído branco: “é tão reconfortante saber que, seja como for, tudo fará sentido no final. E não esses ruídos, essa música que a gente não ouve, esse murmúrio silencioso e a constante sensação de que estamos perdendo alguma coisa”.
O gravador é a figuração de uma máquina para onde foram transferidos os mistérios de uma paixão cruzada e atormentada. Mas, paradoxalmente, a máquina não revelará nada além da própria perda, sustentando aquilo que está irremediavelmente longe, como na epígrafe que a autora toma à poeta argentina Alejandra Pizarnik: “Se fuga la isla/ Y la muchacha vuelve a escalar el viento”.
Não será difícil perceber aí ecos do diálogo de Ricardo Piglia, em sua Cidade ausente (Iluminuras, 1997), com o Museu da novela da Eterna (Cosacnaify, 2011), de Macedonio Fernández.
No caso de Piglia, sua ficção está tomada por um problema: a narração como resistência ao apagamento da história. De um lado, a busca paranóica do sentido; de outro, uma história que permanece viva numa máquina, a despeito dos esforços “oficiais” por desligá-la. Em resumo: diante da ameaça do aniquilamento, a voz se sustenta guardada numa máquina que é a própria narrativa.
No caso de Carola Saavedra, atenua-se o teor político que é ainda forte em Piglia, cuja ficção se situa no marco da pós-ditadura na América Latina. Aí, aflora uma pergunta: o que acontece quando os “inimigos” não estão mais ativos, ou quando se ocultam?
No marco pós-ditatorial, a narrativa é a permanência de histórias não contadas que, formando uma teia coletiva, teimam em soar às margens do discurso oficial, num espaço que é o da literatura mesma, a desdobrar-se em breves utopias. Mas, uma vez que os inimigos se foram, o que será feito da teia coletiva da história? Narrar seguirá sendo uma forma de resistência? Mas resistência a quê? Ao apagamento do sujeito, do indivíduo?
Em Piglia, uma comunidade de “desaparecidos” revive na força discreta da narrativa. Mas e quando o desaparecido está só, e é o próprio narrador?
Talvez não haja resposta para tal pergunta. Ou talvez Paisagem com dromedário seja uma resposta possível, tão precária e transitória quanto tocante.