O domínio da música

O texto a seguir foi publicado no último número da Revista OSESP (ago-set 2014), e nas suas Notas de Programa.

Escrevi-o a propósito da inclusão do Don Juan de Strauss no repertório recente da orquestra. Agradeço a Ricardo Teperman pelo convite.

Quando, sob a batuta de Bismarck, arquitetava-se a unificação do que hoje chamamos de Alemanha, “ferro e sangue” foi a metáfora usada para invocar o espírito germânico. Após a guerra franco-prussiana, em 1871, as artes deveriam irmanar-se à política. Em bom espírito romântico, tratava-se de banhar o passado e o futuro nas luzes regeneradoras do mito, levando a crer no caminho inelutável de um povo. Se por um lado seria equívoco reduzir a criação artística desse período à política, por outro lado é difícil compreender a força e o caráter sublime da música alemã desse momento sem o pano de fundo em que se gestavam expansivos sonhos de domínio e controle.

A música de Richard Strauss conduz a diversos estados de espírito. No entanto, escutá-la exige entregar-se a movimentos impetuosos que buscam tomar a alma a qualquer preço. Trata-se de uma rendição fáustica, como se, ao ouvir, firmássemos contrato com um demônio a um só tempo sublime e terrível. O poder depende inteiro desse pacto que, dando-lhe força extraordinária, faz o homem imaginar-se além de si mesmo, próximo da eternidade.

A Alemanha que conquistava sua unidade viveu sob o signo de Wagner. Logo após o nascimento de Strauss, sua Munique natal veria, em 1865, a estreia de Tristão e Isolda, sob a regência de Hans von Bülow, indicado pelo próprio Wagner, que então caíra nas graças de Ludovico II, rei da Bavária. Fonte de ódio e veneração, Wagner era incontornável. Primeiro trompista do Teatro da Corte de Munique, o pai de Richard Strauss detestava o autor de Tannhäuser. Em 1885, quando o filho se livrara momentaneamente do acanhado ambiente bávaro, Franz Strauss lhe escreveria rogando que seguisse os conselhos dados pelo já consagrado Brahms: evitar floreios temáticos desnecessários, almejar uma polifonia límpida, e, para tanto, estudar a simplicidade das Danças de Schubert. É claro que o caminho desejado pelo pai deveria afastar Richard da tentação wagneriana.

No entanto, conduzido por seu amigo Alexander Ritter, munido de leituras de Schopenhauer e Nietzsche, Richard Strauss se aproximaria de Wagner, para desalento do pai, entregando-se ao ideal da música como reprodução da “vontade”, para enfim lançar-se à composição de seus poemas sinfônicos. Em 1888, concebeu a obra que o projetaria definitivamente: Don Juan, Op.20, que ele próprio regeria na estreia em Weimar, no ano seguinte.

Ainda em 1888, Strauss escreve a Von Bülow sobre os poemas sinfônicos: “Se se quer dar ao público uma impressão vívida, então o autor também deve ter tido uma forte impressão, no seu espírito, do que ele quis dizer. Isso só é possível quando há fertilização por uma ideia poética” (Schuch 1982: 147). O caráter expressivo da música tomava de assalto a filosofia e a literatura, em especial na Alemanha e na França, onde o “deus Richard Wagner”, como o chamou Mallarmé num poema de 1886, era fonte de admiração e incômodo.

Mas Strauss não buscava a potência descritiva da música. Em carta ao escritor francês Romain Rolland, pouco mais tarde, escreveria que “o programa poético não é mais que a causa inicial que empresta vida às formas, nas quais então dou expressão e desenvolvimento puramente musical aos meus sentimentos” (Schuch 1982: 149). A afirmação não nos exime, contudo, da tarefa de imaginar como Strauss entendeu e expressou o drama de Don Juan.

A primeira vez em que a lenda do libertino conquistador ganhou as páginas foi com “El Burlador de Sevilla” y “Convidado de Piedra,” publicado em 1630 e atribuído a Tirso de Molina. A partir daí, Don Juan teria uma carreira fulgurante, nas mãos de Molière, Hoffmann, Mozart, Byron, Pushkin, Liszt e Baudelaire, entre muitos outros. A inspiração de Strauss vem de um poema inacabado de Nikolaus Lenau, cujos versos apareciam nas primeiras versões da partitura de Don Juan. São três passagens em que o herói se pronuncia. Nas duas primeiras, ele rejeita os conselhos do irmão, que a mando do pai pedia que voltasse a casa e abandonasse a lassidão em que vivia. Mas o devasso insiste em ater-se ao círculo mágico (der Zauberkreis) das mulheres charmosas, permanecendo sob uma tempestade de prazer (im Sturme dês Genusses) e querendo morrer dos beijos da última delas. De mulher em mulher, a paixão é sua única paixão, e não há tempo para ver nada perecer nem é seu intuito construir um templo sobre ruínas (Nicht aus Ruinen will ich Tempel bauen) (Del Mar 1986: 67-68). Mas, como em outras versões da lenda, a morte o aguarda na figura de um inimigo por quem ele paradoxalmente anseia. Desfalecido o desejo, o herói se descobre falto de forças, próximo da escuridão final.

Don Juan quebra as leis da aliança e da fidelidade e expõe o desejo que a sociedade comportada encerrava no quarto dos pais — ou no prostíbulo, talvez nos lembrasse Foucault. Se por um lado o mundo de Strauss é distante do nosso, por outro, no ímpeto de controlar e dominar o próprio corpo, ensaiava-se uma forma de política, mas também de conhecimento. A pátria de Freud não era tão longe, nem tardaria a estabelecer-se uma nova compreensão do humano e o entendimento da cultura como uma complexa rede de mecanismos repressores. Nesse quadro, domínio e controle não eram matéria exclusiva dos estadistas, interessando também à arte e talvez especialmente à música.

Entregando-se ao prazer, Don Juan pensa subtrair-se à morte. Sua aventura ininterrupta é a ilusão daquela eternidade que o mundo laicizado roubara aos homens. E como entender as passagens mais vigorosas, na peça de Strauss, sem pensar no rapto do corpo, no prazer físico que leva às alturas e conduz ao êxtase? Ao menos nisso, o romantismo é herdeiro do barroco: piedosa ou impiedosamente entregue, o corpo descobre o divino gozo, e a sacralidade é o rito sempre renovado do ser que se aproxima da morte. Místico ou mundano, o amor vale pelo arrebatamento, quando o sujeito desiste de si mesmo, esgotando-se, como Don Juan se entrega ao inimigo, ao deixar cair a espada, impotente diante da morte. Desvela-se então o corpo exangue, tão gélido quanto aquela escura lareira extinta que arremata os versos de Lenau utilizados por Strauss (Und kalt und dunkel war es auf dem Herd) e que se pode “sentir” ao final do poema sinfônico, no rufar pianíssimo dos bombos, seguido de um lindo acorde menor.

Mas logo antes dessa passagem “fria”, que conduz a alma ao Nada, e imediatamente após a pausa que encerra o mais incrível acúmulo de crescendos, ouve-se uma trompa desferir um golpe no meio de um tímido acorde de Lá Menor. Há quem tenha ouvido, na nota dissonante, a rajada de ar da espada que se desloca, fatal, em direção ao corpo de Don Juan. Desarmado e vencido, ele fenece, como a música.

Mas antes da morte cabe ao ouvinte detectar e sentir a alegria fátua de Don Juan, seus truques risonhos, os lances heroicos ou ridículos, a festa, o orgulho, a futilidade, a leveza, o engano, a beleza, o flerte e o clímax tantas vezes experimentado, expressos desde a fenomenal abertura até os temas que, exigindo máximo virtuosismo da orquestra, projetaram Strauss no cenário musical de seu tempo e do nosso. De fato, Don Juan, Op.20 só é menos popular que outro de seus poemas sinfônicos, Assim Falou Zaratustra, Op.30, composto pouco depois, e lançado às estrelas pelo cinema de Kubrick.

A despeito da qualidade variável de sua produção, e passados quase cinquenta anos do sucesso de Don Juan, Op.20, Strauss todavia se atinha ao ideal de uma música que conduzisse a humanidade para além de si mesma. Em 1942, quando o antissemitismo de sua juventude cedera, convertendo-se numa complicada relação com o nazismo (Strauss tinha nora e netos judeus, e perdera o cargo de diretor da Câmara de Música do Reich em 1935 por causa de uma carta enviada a Stefan Zweig e interceptada pela Gestapo, ao mesmo tempo em que assinara documento acusando Thomas Mann de manchar a cultura alemã), podemos vê-lo, já velho e cansado, a relembrar suas óperas, inclusive Salomé e Elektra, ambas singulares, a última composta a partir de libreto de Hofmannsthal. Ele escreveria: “Nelas penetrei os mais extremos confins da harmonia, da polifonia psicológica e da receptividade dos ouvidos modernos” (Schuch, ed. 1974: 155). Não é uma constatação modesta, talvez porque imodesta seja a própria concepção das artes de que Strauss é herdeiro.

Poucos anos depois, ele ainda buscaria na música o esteio de uma cultura ameaçada, que ligava a Alemanha à Grécia antiga, num novo círculo mágico: “Após a criação da música alemã por Johann Sebastian Bach, após a revelação da alma humana (buscada por todos os filósofos desde Platão) na melodia de Mozart — que eu compararia ao Eros platônico pairando entre céu e terra — e após os magníficos palácios das sinfonias de Beethoven, Richard Wagner, o poeta-dramaturgo e músico-filósofo, concluiu o desenvolvimento cultural de três mil anos ao criar a linguagem da orquestra moderna, completando o mito cristão e germânico em perfeitas criações dramático-musicais” (Schuch, ed. 1974: 90).

Strauss escreveu essas linhas no verão de 1945, numa Alemanha completamente arrasada. Para ele, a despeito dos escombros deixados pelo desejo de domínio, haveria ainda algo além da morte, como se um herói trágico resistisse a deixar o palco, para seguir sonhando, em júbilo eterno, com o poder de sua cultura.

PEDRO MEIRA MONTEIRO é professor titular de literatura brasileira na Princeton University. Autor, entre outros livros, de Mário de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda: Correspondência (Companhia das Letras e Edusp/IEB, 2012; Prêmio ABL de Ensaio 2013).