O choro de Letícia Dornelles: a mágica bolsonarista

Pedro Meira Monteiro | O Globo 17/09/2020

Participei recentemente de uma reunião na Câmara promovida pelo deputado Marcelo Calero, sobre a crise na Fundação Casa de Rui Barbosa. Entre os presentes estavam deputados e ex-dirigentes da instituição, além da atual presidente Letícia Dornelles. O que vi foi uma lição de como funciona o bolsonarismo.
Como tudo que se refere à cultura sob o atual governo, a Casa de Rui Barbosa tem sido mal gerida. O afastamento abrupto de servidores de seus cargos de chefia se deu sob o comando de uma presidente que, contra a tradição, não foi eleita por seus pares e tampouco tem qualquer qualificação para ocupar o cargo (Dornelles foi repórter esportiva e autora de telenovelas).
A mediação equilibrada do deputado Calero não impediu que os presentes tecêssemos críticas contundentes à maneira como a instituição vem sendo tratada pelo governo federal. No entanto, o que sobressaiu foi outra coisa.
Acuada pelas críticas, Letícia Dornelles chorou, e chorou muito. Não cabe a ninguém avaliar a sinceridade da dor alheia. Provavelmente eram lágrimas sentidas. Mas a discussão pública se faz com ideias e, diante de ideias, a estratégia parece ser a de desviar a atenção do foco (o que se estava debatendo) e mergulhar num espetáculo que fala ao coração, para evitar o debate. É uma espécie de prestidigitação: o olhar da plateia é dirigido a outro ponto, enquanto a “mágica” se faz.
Tive a mesma sensação quando o deputado Daniel Silveira interveio em nome de Dornelles. Um extraterrestre que ouvisse sua fala polida pensaria tratar-se de ato de fé democrático; mas se fosse apresentado ao próprio Bolsonaro, ficaria confuso: como pode o deputado parecer tão racional, se o presidente que ele apoia é um troglodita? Ao dar um google, nosso alienígena começaria a entender melhor os músculos salientes de Silveira: foi ele que rasgou a placa de Marielle, ao lado de um sorridente Witzel.
O círculo foi se fechando quando, diante da evidência de sua desqualificação para o cargo, Letícia Dornelles exclamou que sua função era “política” e que ela estava ali para conseguir verbas para a instituição. Nesse momento, os símbolos foram conclamados e ela reapareceu na tela ladeada por dois funcionários de olhar fixo e severo, apresentados como, eles sim, os verdadeiros conhecedores das coleções e da pesquisa. A cena era constrangedora, porque confirmava o despreparo da atual presidente. Como toque final, os três estavam sem máscara, assim como faz afrontosamente o presidente da República.
A reunião, que pode ser vista no site da Câmara dos Deputados, é um exemplo eloquente da técnica de desvio da atenção. Trata-se de uma verdadeira estética bolsonarista, como aquela que vem sendo exaustivamente analisada pelo escritor Ricardo Lísias. O olhar se volta para outros temas, para não discutir o que interessa, que é o funcionamento republicano das instituições. Essas, Bolsonaro vai diluindo aos poucos, ao minar a máquina do Estado, colonizando-a com quadros pífios, embora eficientes para o seu fim.
Ainda assim, a reunião teve seus pontos altos, como a fala da deputada Benedita da Silva, que com elegância recordou a profunda ambiguidade do legado de Rui Barbosa. Ao referir a célebre queima das matrículas da escravidão (que uma repórter equivocadamente pensou ser referência a alguma queima contemporânea de arquivos), a deputada colocou o dedo na ferida que nos aflige: a memória é feita de recordação e apagamento. Precisamos escolher o que lembrar: aí está a política.
É sintomático que um debate tão importante se dê em meio ao assalto da memória coletiva, no momento em que mais um secretário da cultura pretende rescrever a história brasileira, destacando “vultos” pátrios ao invés de olhar para a vida onde ela pulsa.
Os bolsonaristas provavelmente sabem o que estão fazendo. Quanto aos outros, talvez estejamos apenas brincando de democracia, enquanto o desmanche se faz, inexorável, em meio às lágrimas que vieram para desviar a atenção.


Pedro Meira Monteiro é professor titular de literatura e cultura brasileiras na Princeton University.

Foto Ronaldo Caldas/Ascom/MinC (Wikimedia Commons)

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