Nós somos muitas

Para quem está aqui observando, a sensação é de que a contramão se tornou enfim uma possibilidade. Ao ver o mundo tomar o atalho da autoaniquilação, o desvio português parece um alívio, ainda que seja uma fantasia. Aliás, o alívio é sempre uma fantasia, como se uma clareira de repente se abrisse na dor.

A fantasia imperou ontem no Terreiro do Paço, em Lisboa, numa gigantesca festa LGBT à beira do Tejo, com dança, bebidas, música eletrônica e a mistura de todas as tribos, inclusive famílias, crianças e turistas, que em Portugal são legião.

Era um lugar engraçado – palavra que se usa muito aqui, significando “com graça”, mais que “divertido”. Parecia uma mistura de cidade de interior e cidade cosmopolita: uma Amsterdam sobreposta à Sucupira de Dias Gomes, digamos assim.

A força da contracultura tem o segredo de sua seiva bem guardado, e ela opera quando menos se espera. Mas entre uma apresentação e outra, o palco foi tomado por um grupo de representantes da câmara municipal que discursavam, um a um, depois de serem apresentados e aplaudidos por uma drag queen. Até a secretária de Estado para Cidadania e a Igualdade, a antropóloga Catarina Marcelino, discursou e falou na homofobia de Estado da Tchetchênia, além de associar o futuro de Portugal à possibilidade de se sair do armário – metáfora cheia de ecos, naquele contexto. Até ali, o inglês tinha sido a língua franca, talvez porque seja o idioma que se usa em qualquer cidade “cosmopolita”, ou talvez porque a cena gay flerta, desde sempre, com as décadas de ouro da liberação sexual: havia algo de ABBA, disco music e B-52’s por todos os lados. Ainda assim, a impressão era a de que, a qualquer momento, uma das drags poderia começar a dançar o vira, e nem por isso causaria espanto.

A festa aconteceu diante do prédio que abriga a exposição de fotos de João Pina sobre o que restou da Operação Condor, a infame colaboração entre as polícias secretas das ditaduras sul-americanas, que incluiu o Brasil do coronel Ustra (o homenageado de Bolsonaro, para quem não se lembra). Isso num dia em que tínhamos visitado, por coincidência, o Museu do Aljube, onde, além da impressionante exposição permanente sobre a ditadura e os presos políticos, havia uma exibição sobre o exílio português de Augusto Boal, após a Revolução dos Cravos. Pude então assistir a um vídeo em que Chico Buarque lembra que a ideia por trás de “As mulheres de Atenas” era a greve de sexo de Lisístrata, dramatizada por Aristófanes. Ao contrário de Medeia, que está sempre próxima do arroubo, Lisístrata é pedestre, menos histriônica.

Havia um tanto de Medeia e outro tanto de Lisístrata no Terreiro do Paço, como se o gesto indômito de uma drag queen se projetasse, desajeitado, na paisagem de uma pequena aldeia. Aliás, o nome da festa era “Arraial Lisboa Pride”.

Mas o fato é que a reflexão filosófica se faz, invariavelmente, quando olhamos para as ideias e deixamos os trabalhadores de lado, a trabalhar.

Para amarrar a minha história neste país que continua a experimentar, devo lembrar que, no singular arraial de ontem, os vendedores de bugigangas se destacavam na multidão: negros, indianos, mulheres, “ambulantes” de todos os tempos e lugares. A certa altura me lembrei não de Lisístrata, que eu deixara para trás em minha imaginação, mas pensei em Rosi, a cabo-verdiana que a empresa de aluguel de temporada enviara, no dia anterior, para que limpasse nosso apartamento. Pude conversar com ela e, ao final, perguntei se a veria na semana seguinte. Ela abriu um dos mais lindos sorrisos que já vi, e me disse: “Não sei. Nós somos muitas”.

1 Comment

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Nina Ferrazreply
June 29, 2017 at 09:24

Que arraso de texto.
Viva! Chico Buarque, ABBA, Sucupira e Amsterdã.
Amei.

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