No es fácil
O discurso de Obama anunciando o que talvez venha a ser a suspensão do embargo a Cuba parte de uma premissa: os mapas desenhados antes que nascêssemos não nos dizem respeito. É uma premissa em si mesma corajosa.
Talvez tenham razão os que se mostram céticos em relação ao movimentos dos Estados Unidos. O que querem? Por que uma possível suspensão do embargo, e quais deveriam ser os seus termos?
Os mapas que vieram antes de nós são como cartas afetivas, projeções dos pais: sentimo-nos confortáveis ou não no desenho que nos foi legado. Seguimos a vida inteira negociando com esse mapa, dizendo “opa, aqui sou eu, nem vem que não tem, este é meu território, aquele lá é seu”. Para os da minha geração: um jogo de War, digamos assim (descubro que o jogo, significativamente, em inglês se chamou Risk, e foi lançado na França na década de 1950 com o nome La Conquête du Monde – em suma, cada louco com a sua mania…).
Não há dúvida que Obama fez as concessões de sempre, e mostrou o seu característico balanço (que o faz refém de uma direita assutadora): falou dos cubanos de Miami, incensou os heróis das guerras etc. No entanto, iniciou sua fala com clareza, marcando o possível reclamo de uma geração: se mal sabíamos andar quando os Estados Unidos tentaram invadir Cuba, por que seguiríamos a nos orientar por um mapa desenhado pelas mãos hábeis da Guerra Fria? O mapa funciona? Não funciona mais não. Se Macunaíma fosse estrategista e analista de relações internacionais, o diagnóstico não teria sido mais preciso: “tem mais não”. Acabem aí com essa máquina embargo.
Assim colocada, a coisa pode parecer simples. Mas não é. Quem antes imaginaria um presidente dos Estados Unidos falando em “barreiras ideológicas”, sugerindo que elas servem como vendas? Ou arranhando um espanhol para citar José Martí?
No discurso da direita, as barreiras ideológicas devem cair apenas para que o dinheiro siga fluindo. Mas não neste caso. Se alguém duvida, que ouça novamente o discurso: se os Estados Unidos seguiram negociando com a China, por que não fariam o mesmo com Cuba? O que faz Cuba especial? Obama-Macunaíma pisca para um lado “talking business”, e pisca para o outro, deixando a nu a questão ideológica.
Fiquei nestes dois dias pensando em Martí, mas não apenas porque ele apareceu um par de vezes no discurso de Obama. O “pai” de Cuba livre podia lançar as mais terríveis invectivas contra o monstro do Norte, mas ao mesmo tempo se sentia fascinado pelo experimento democrático norte-americano, pela sua potência sempre falhada, traída pela força da grana. “Esta república, por el culto desmedido a la riqueza, ha caído sin ninguna de las trabas de la tradición, en la desigualdad, injusticia y violencia de los países monárquicos”, escrevia ele em 1887 de Nova Iorque, ao jornal de Buenos Aires La Nación, em que colaborava. O contexto era interessantíssimo: ele se referia aos quatro anarquistas que tinham sido enforcados, após liderarem um dos movimentos sociais mais fortes daquela quadra, em Chicago (terra em que Obama cresceu politicamente, nunca é demais lembrar). Martí não sabia o que fazer diante da “massa colérica”, se deveria amá-la ou temê-la, e acaba por fazer o que ele faz tão bem: temer amando.
De volta a Obama: que máscaras caem se o embargo for derrubado?
Se os ódios nascem de necessidades e injustiças reais, é sempre uma máscara que os sustém. Eu preciso de um monstro para seguir odiando. E o que acontece quando se apazigua o bicho? O que ocorre quando se soltam as amarras da proibição, se as barreiras cedem e exigem outras histórias, outros desenhos, outras circulações? Que novas máscaras se forjam, quando o bicho vai embora?
Tentei seguir o que dizia Yoani Sánchez em seu blog e em suas aparições públicas, e me interessou a quantidade de máscaras com que ela está lidando (é um elogio, que fique claro): o artigo no NY Times, e seu último post no blog 14ymedio, cada qual dirigido a um público diferente. Enquanto isso, na pátria amada parece que a preocupação é muitas vezes saber o quanto o Brasil teve de participação no episódio: provincianismo e mau jornalismo, que andam sempre de mãos dadas, são mesmo coisas atrozes!
Outro dia eu dizia a uma amiga americana, que vai muito a Cuba como pesquisadora, que a insistência no marco da repressão já ia se tornando patético: esses espiões que vão e voltam me fazem pensar (outra questão de geração…) em Get Smart, o “Agente 86”, de Mel Brooks. Como se Maxwell Smart aparecesse aqui e ali, nos aeroportos, recriminando quem passa pelas fronteiras. Mas a minha amiga me lembrou que afinal a repressão é real, conquanto pareça surreal. Há poucas semanas, ela gastou um bom tempo “conversando” com a polícia cubana sobre o texto que levava na mala, em que tratava – ela se atreveu a contar-lhes – de arte e política. E teve que ouvir do agente de segurança que “arte” e “política” não se misturam. Se por um lado a Revolução já virou a caricatura de si mesma, ela segue podendo perseguir, negando a entrada e a saída de quem quer que seja, prendendo e vigiando.
Ao menos num ponto estou com Yoani Sánchez e não abro: é hora de testar os limites da repressão e da censura.
Mas talvez seja sempre hora de testar a repressão, sabendo que ela existe dos dois lados, de formas diversas. O mapa está aberto e qualquer tentativa de encerrá-lo num novo desenho será apressada.
A metáfora de Davi contra Golias ainda funcionará? E por quanto tempo?
A questão permanece enorme, gritando lá do fundo: sejamos ou não “todos americanos”, como disse Martí pela boca de Obama, como conciliar dinheiro e democracia, direitos e lei, pessoas e polícia, política e repressão? No es fácil.