Neste vale a pena naufragar

Cheguei ao fim. O fim sinuoso de Anderline, personagem e narradora de Mar Negro (Ponteio, 2014). Adorei a viagem, a graça da conversa da narradora com o autor, as piscadelas para o leitor, a destreza com que Dau Bastos juntou reflexão fina e humor, despretensão e seriedade, sem jamais ser sério onde podia evitá-lo.

Anderline, a adorável Line, é uma mulher feiíssima, alagoana arretada cuja vida de cão é temperada pela inteligência e agudeza da leitora voraz, ciente afinal de que sua literatura é para poucos. Mas ciente também de que os happy few não são uma camarilha de eleitos, e sim os poucos que conseguem sobrenadar no mar de obviedades e produtos mentais pré-fabricados que as letras oferecem hoje em dia. A prosa de Anderline é papa fina, entre outras razões porque ela não está nem aí para o grande público, que a despreza como a todas as criaturas esquisitas e pobres deste mundo. Line é de uma “grei” (a palavra não me sai da cabeça, desde que a ouvi na boca do Supremo Barbosa, faz uns dias) a quem a República não ouve nem atende. Ainda que ela seja, afinal, uma universitária da era Lula…

Mas o livro de Dau Bastos contém uma angustiada resposta à ilusão do otimismo patrioteiro, que Line põe à prova em sua viagem pelo Leste europeu, rumo ao Oriente, onde a miséria faz par à dureza da paisagem social da terra de Collor, de PC Farias e do Marechal Deodoro da Fonseca. Line, bem feitas as contas, é a versão sofisticada daquele jumento da fábula que ao fim pergunta se “não terei eu toda a vida que carregar a albarda…”

Uma beleza. No início, eu pensava em Reinaldo Moraes, mas depois vi que a viagem era outra, mais engajada. No entanto, como quando li Pornopopeia, ri à beça. E fiquei curioso em saber que viagens, reais e imaginárias, deram sustentação à viagem de Line. Line que é underline, ou melhor, Anderline, e vive a queixar-se do autor, além de buscar sempre os seus semelhantes, isto é, aqueles que se sabem personagens de papel, e que vivem da angústia de sê-lo. Angústia de papel, no papel!

E por falar em piscadelas, se é verdade que “G.H.” são as letras postadas no coração do teclado (no caso de Clarice), adorei que Line fosse, afinal, Anderline… Gostei também que ela resistisse, brava e irônica, ao torneio metalinguístico que ameaça tomar conta da trama, e zombasse do poder do autor, para só no final relaxar e lançar-se a um mini-pacto realista, que é sua salvação, a ilusão de saber-se real…

Mas, queiram ou não os personagens, e queiram ou não os personagens que todos somos, aquilo ali é um livro real, culto e belo como a língua. É um livro, tanto quanto a felicidade é o fim da literatura: estranha e bonita conclusão, na sua ambiguidade. Uma delícia, o Mar Negro de Dau Bastos.