Manhattan
Ontem assisti a Manhattan, de 1979. “One of my favorite Woodies”, disse um amigo americano.
É curioso como um artista do porte de Woody Allen torna-se uma referência tão natural para a cidade. Talvez Manhattan não fosse nunca Manhattan sem Woody Allen. Manhattan, a propósito, é mais uma dessas homenagens ao cinema que fazem da sua obra algo tão, digamos, metacinematográfico. Mesmo os amadores podemos sentir que Manhattan é uma cascata de citações, um devaneio por meio de filmes que não vimos mas que conhecemos.
Borges sugeria que jamais se lê um clássico pela primeira vez. Ninguém lê o Quijote pela primeira vez, porque quando o encontramos, já é a segunda vez. Já o conhecíamos antes. Assim com as citações de Manhattan: não importa que não conheçamos exatamente o que está sendo citado. Podemos sentir que a história do cinema americano está lá, ofertando todo o seu lirismo sob as luzes frias de Manhattan.
O branco e preto é fundamental, não apenas porque possibilita o jogo de luz e sombra que Woody Allen maneja com tanto senso poético, mas também porque nos faz pensar nos clássicos do cinema. Eu pensava todo o tempo nessa obra-prima da década de 40 que é Casablanca. Fiquei mesmo a cismar: a terra fantástica que separa a Europa invadida pelos alemães da América promissora não é bem o anúncio generoso e fugidio da Nova Iorque que nos atrai a todos? O Marrocos de Casablanca não é já um pouco novaiorquino, como se Manhattan começasse às portas do Rick’s, Humphrey Bogart atuando como o malandro intocável em quem se resguarda essa pureza que os norte-americanos teimam em projetar para nós?
A ambiência de Manhattan não existiria sem a literatura e a música: Gershwin e Scott Fitzgerald. Sim, porque Manhattan não se entende sem a dupla provocação da Rhapsody in Blue e do Great Gatsby. Literatura, música e cinema, juntos em Manhattan.
É um filme a revisitar sempre. Eu ontem senti que talvez tenha nascido na época errada: por que não vim pra cá nos anos setenta?
A Nova Iorque de Manhattan é uma mistura preciosa de cenários que hoje reconhecemos e de grandes vazios, signos misteriosos que não existem mais senão na tela. É uma cidade em transformação, claro. Mas sobretudo uma cidade entre um tempo que se foi e outro que se anunciava. Há mesmo uma delicadeza, uma ingenuidade no ar (que se consubstancia na deliciosa frescura da personagem de Mariel Hemingway) que definitivamente não fazem mais parte do cenário. Hoje Nova Ioque é demasiado colorida. Há que voltar, com a imaginação, ao tempo em que tudo se revelava em branco e preto.
Manhattan é um filme nostálgico, acima de tudo. Um filme que nos faz lembrar da necessária perda da inocência. Pergunto-me como seria assistir a Manhattan em 1979. Não tenho remédio senão perguntar aos americanos.