Leitura e superfície: abrolhos
Sem deslocamento não há leitura.
A sentença, em si mesma banal, tem consequências vastas: a leitura implica um deslocamento. Mas de quê? E para onde?
Seria fácil responder com a fantasia das “profundezas do sujeito”, imaginando a leitura como uma atividade que mexe com o “nosso interior”, provocando e, no limite, melhorando o ser. Mas esta seria uma fórmula inútil em sua grandiloquência.
O deslocamento em questão não apontará, necessariamente, para as profundezas ou para as alturas. É muito mais de uma topologia que se fala, quando se fala de leitura: quando leio, encontro escolhos (ou escolho encontros?), sinais ínfimos que transformo em significantes, tão mais importantes quanto mais opacos e resistentes eles pareçam.
Ler talvez seja entregar-se a uma topografia de acidentes: a história de um detalhe é a outra história da história. Como sabem os bons leitores, qualquer história que se preze exige um trabalho de foco, como se brincássemos com uma câmera, buscando os dois níveis em que faz sentido aquilo que se vê. Mas o que se vê é visto apenas na superfície em que, sem uma câmera com que brincar, não haverá senão as mesmas e mudas palavras.
O sentido talvez seja isso: a ponte precária que o trabalho de foco permite criar entre os escolhos que povoam a página.
Mas a definição é válida? Talvez, se lembrarmos que escolho lembra escolha, que lembra escoliar, que lembra escolar, e tudo se junta – por via da etimologia mas também da leitura imaginosa e irresponsável – na ideia de uma colheita que os olhos fazem: colheita do que se lhes apresenta, e do que eles no fim das contas querem, por vias estas sim insondáveis, colher.
O português mais antigo, que é marítimo por vocação, lembra que o escolho, sendo um recife, obriga a uma ação: abrir os olhos.
O que a leitura permite, então, é ver o que se apresenta, o que se torna presente, como perigo: abrolhos.
PS. Mas a leitura que (nos) desloca não estará cifrada, como num negativo fotográfico, na usual incapacidade do olhar materno? Reparo, no belo O conto machadiano: uma experiência de vertigem, que Lucia Serrano Pereira segue intrigada pelos olhos oblíquos que ela estudou com tanta propriedade em livro anterior, pensando, é claro, no mais famoso olhar da literatura brasileira: Capitu.
Desta vez, lançando-se no balanço vertiginoso da banda de Moebius, a psicanalista de Porto Alegre lembra: “quando uma mãe não ‘lê’, e sim tenta adivinhar, atribuir em vez de supor, aí pode se produzir o encontro assustador (lembremos a inquietante estranheza, o Unheimlich em Freud): ser tomado como pura extensão, onde não se abre espaço para a alteridade”. A incapacidade do leitor, eu adicionaria, está dada na possibilidade terrível de que não paremos para ler, deixando que o escolho passe diante de nossos olhos sem que o notemos, e sem que o enfrentemos. Isto é, o erro da leitura é passar os olhos pela página sem escolher, sem colher o que se deve, sem abrir os olhos para o que lá está, na superfície sobre a qual todos, ainda os que nos imaginamos profundos, caminhamos.
1 Comment
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Adorei o jogo que você inicia com o texto, entre escolher, encontrar e a topologia. Mas o que mais me interessou, enquanto terapeuta e pai que tenta estar atento (de olhos abertos!) aos movimentos dos jovens, foi a questão do “perigo” da leitura.
O que moveria a eterna preocupação dos pais diante daquilo em que seus filhos colocam os olhos? Se já não é mais de que os rebentos se fascinem por um autor “subversivo”, não é menor ao temer que caiam “na rede” de forma abusiva, ou mesmo de que sofram abuso por parte de algum outro navegante.
O trabalho me parece precioso por mostrar que não se trata tão somente de limitar o acesso ao mar, mas acima de tudo deixar que aprendam a navegar – ainda que nunca se tenha muita clareza de como fazê-lo.