Karajan e a espada
Há dois dias escuto quase ininterruptamente Don Juan, Op. 20, poema sinfônico que catapultou Richard Strauss ao estrelato, em 1889. Em seus pouco mais de vinte anos de idade, embebido, como tantos outros nessa Alemanha que nascia, de Schopenhauer e de Nietzsche, e sob a estrela forte de Wagner, o compositor recusava o caráter “descritivo” da música, apostando fundo na “expressão das emoções”.
Contudo, há passagens e mais passagens que remetem às muitas e deliciosas estrepolias que levam o herói libertino à morte. A propósito, alguns comentadores supõem que o golpe letal que nele desfere D. Pedro (Strauss segue o poema inacabado de Nikolaus Lenau) pode ser sentido no toque levemente discordante de uma trompa, logo depois de um maravilhoso e plácido acorde em lá menor.
Tenho visto no youtube uma das antológicas apresentações de Karajan, com a Filarmônica de Berlim, em Osaka, em 1984. É impressionante: o velho maestro mal se move em sua casaca, e no entanto domina absoluto os músicos. Os planos são belíssimos, especialmente quando a tomada lateral faz pensar na orquestra como um mar que Karajan, ao invés de singrar, controla, como se ondas se formassem com o subir e descer dos arcos.
O curioso é que Karajan adoça o seu mar, e o suposto golpe mortal em Don Juan mal se ouve, ou melhor, não há nada de “discordante” no toque da trompa, logo após o acorde em lá menor. É fácil encontrar a passagem, porque ela vem depois de uma pausa, logo ao final. Neste caso, aos 17’30”.
Já nesta interessantíssima filmagem de um ensaio, seguido de um concerto da Filarmônica de Viena, descobre-se que Karl Bohm “leu” diferente o Don Juan de Strauss. Aqui sim, ouve-se a trompa, discordante. No ensaio, aos 43’58” e aos 44’25”; depois, no concerto, à altura de 1h 03’13”.