“Here, I’m hemorrhaging time”

A sentença, conquanto críptica, tem valor imenso. É a observação de uma norte-americana que, para passar o tempo, vem assinando questões estrangeiras na piauí, enquanto escreve outro divertido blog, o ruiva no rio.

Mas vamos lá. É mais sério do que parece. O que alguém da geração multitasking* pode dizer sobre o tempo? Para essa geração, aparentemente o tempo se divide entre o banho e o resto do dia e da noite.
No banho é impossível fazer diversas coisas ao mesmo tempo. No chuveiro, somos reduzidos ao pensamento. Fora dele, o mundo nos chama e provoca, invocando o ser social que há dentro de nós. Tarefa pra cá, tarefa pra lá, e ei-nos mergulhados na ética do trabalho, que é a antessala da realização divina. Weber deve ter inventado essa teoria no banho, enquanto cantava uma Lied.
Já nos trópicos… Tudo é banho! Eu nunca soube se a história que me contaram no primário, de que “os índios brasileiros” tomavam muito banho, é verdadeira. A professora que ensinou isso talvez não passasse no teste de antropologia mais básico, mas o fato é que havia um gostinho de revanche em dizer que os índios gostavam de banho, ao contrário dos portugueses… Era delicioso pensar na imundície do colonizador.
Não importa se o banho é literal ou não: tomamos banho demais no Brasil. Segundo a autora do blog, “Brazil is like a massive shower”. A imagem é bonita e, de fato, Gilberto Freyre adoraria escutá-la.
Mas antes que nos acusem de relaxados, vale a pena lembrar que a parada para o banho não é apenas subtração à lógica massiva do trabalho (como se, no chuveiro, fôssemos Bartleby em coro, cantando felizes: we’d rather not…).
O banho, na acepção da Flora, me faz pensar numa questão mais funda, e para o mais fundo há sempre Pascal a estender-nos a mão: o homem não consegue viver consigo mesmo. Sem o espelho do Outro, sem a “ocupação” (alguém se ocuparia produtivamente se não houvesse o Outro?), somos sujeitos que não podemos fazer nada além de dar-nos conta de nossa própria pequenez, isto é, de nossa miséria.
Pascal dizia que era impossível “ficar em repouso num quarto”. Talvez os franceses, com sua conhecida aversão ao banho (outra verdade compartilhada por minha professora de primário), precisassem de outras metáforas para o problema do tempo. Porque ficar em repouso num quarto, ou tomar banho (quando se está nos trópicos ou nos dorms de Princeton), é sempre uma forma de encontrar-se consigo mesmo. E o que nós vemos quando estamos sozinhos, tendo só a nós mesmos por testemunha, nem sempre é entusiasmante.
Ao menos Pascal sofria dessa doença.
Mas os melancólicos, unidos, ainda venceremos. Nem que seja no banho, cantando e dançando sozinhos, que é também uma forma de saber (d)o mundo.
* Operosos a mais não poder, os americanos transformam tudo em verbo. “To multitask” é aparentemente uma ação possível, no rol das ações ditas humanas.

2 Comments

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Anonymous
September 19, 2011 at 02:36

Lembro de um dia… eu estava no highschool, foi antes de uma prova. Coloquei as minhas notas no chuveiro envolvidas em plástico para poder lé-las enquanto tomava banho. Agora me pergunto se fugia de mim propria, mas certamente, aquilo era “multitasking”… Bonito texto.
Azahara.

Anonymous
November 1, 2011 at 23:24

nossa Pedro! Adorei sua entrada, sobre tudo porque é certa! O da metalenguagem critica ta seguindo a gente pelo mundo inteiro…
pd: uma querida presencia brasileira falou pra mim que o cheiro dos europeus nos meios de transporte publicos é muito desagradavel… “nunca percebi isso no Brasil!!!” foi a reação dela…imagina como recebi este comentario, com cara de europeu!!! Abração, e.