Help, we need some glue here!

Acabo de ler, na versão online do NYTimes, que a suprema corte dos Estados Unidos rejeitou a ação coletiva movida por um milhão e meio (!) de mulheres, empregadas do Wal-Mart que se sentiram discriminadas tanto em relação a seus salários menores, quanto a promoções que teriam sempre favorecido os colegas homens.  A decisão tem uma enorme importância prática, na esfera política (que será das ações coletivas, a partir daqui?), mas tem também consequências menos imediatas, que são de ordem filosófica.
Num país cujo sindicalismo é eminentemente utilitário (mas nem por isso menos aguerrido que em países onde os sindicatos têm feição ideológica clara), o desafio parece ser um problema técnico: os advogados das mulheres não souberam provar que a discriminação seria mesmo coletiva. O juiz responsável por comunicar a decisão da maioria, Antonin Scalia (nomeado por Ronald Reagan em 1986), afirma que o Wal-Mart tem mais de 3.400 lojas espalhadas pelo país, e que possui uma política de recursos humanos que proíbe expressamente a discriminação, dando aos gerentes locais autoridade sobre contratações etc. Segue então o juiz, de acordo com o NYTimes: “On its face, of course, that is just the opposite of a uniform employment practice that would provide the commonality needed for a class action. It is a policy against having uniform employment practices.”
O argumento é claro: o caso, ainda segundo Scalia, envolve “literalmente milhões de decisões” de diferentes empregados. Portanto, para provar que se trata de uma ação coletiva, as empregadas deveriam apontar “alguma cola que mantenha todas essas decisões juntas” (some glue holding all those decisions together).
Ou seja, toda a ideia de uma cultura da discriminação cai por terra, porque as evidências são insuficientes para provar que houve, de fato, algo que vai além de ações individuais que somente podem ser compreendidas individualmente, uma a uma.
Um teimoso leitor de Durkheim poderia imaginar que talvez tenha faltado, ao juiz norte-americano, certo senso sociológico: afinal, há ações que têm sua mais funda razão em algo que escapa ao indivíduo. Quando há discriminação, evidências coletivas podem ser a prova de um preconceito que opera em casos individuais. Quando quis entender a evolução do suicídio na França, Durkheim, por exemplo, não se importou com as razões individuais dos suicidas (matéria para uma ciência que ele trabalhava por tornar secundária: a psicologia), mas sim com as taxas de suicídio. As taxas é que diziam o que de fato ocorre na sociedade. Tal a crença durkheimiana, sua fé na sociologia como ciência nascente.
Ainda de acordo com o NYTimes, as mulheres discriminadas recorreram a um sociólogo, William T. Bielby, especialista em “social framework analysis”. Em seu testemunho à Suprema Corte, ele disse que coletara “evidência científica sobre a discriminação de gênero, estereótipos, bem como a estrutura e dinâmica da desigualdade de gênero em organizações”. Sua conclusão é que dois aspectos da cultura corporativa do Wal-Mart poderiam ser considerados fatores responsáveis pelas várias disparidades entre homens e mulheres. Um seria a política centralizada de pessoal; o outro, seria o fato de que decisões subjetivas fossem feitas por gerentes em cada local de trabalho. Juntos, os dois fatores permitiram que estereótipos influenciassem decisões pessoais, tornando as “decisões sobre salários e promoção vulneráveis à discriminação de gênero”.
Obviamente, não tenho elementos nem competência, nem tempo nem alma, para avaliar seriamente as “evidências” do caso, mas a resposta de Scalia é reveladora, pela força conservadora com que evoca a distância de sua visão daquela que o sociólogo tentou expor à Corte: “It is worlds away from ‘significant proof’ that Wal-Mart ‘operated under a general policy of discrimination’.”
Mundos de distância… De fato, vale a pena ler o reparo da juíza Ruth Bader Ginsburg (indicada por Bill Clinton, e segunda mulher a ocupar uma cadeira na Suprema Corte nos Estados Unidos), para quem as estatísticas apresentadas pelas mulheres e suas histórias pessoais conformam evidência de que “o preconceito de gênero contaminou a cultura corporativa do Wal-Mart” (gender bias suffused Wal-Mart’s corporate culture). A prática de delegar a supervisores tamanha autoridade para tomar decisões de política de pessoal, sem o controle de normas estandartizadas, tem historicamente o potencial de produzir efeitos de disparidade. O remate é límpido, certeiro: “Managers, like all humankind, may be prey to biases of which they are unaware.”
Para isso existe a sociologia: para desconfiar de que, na prática, obedecemos a razões de que somos ignorantes. E tais razões existem, ainda quando pareçam estar a “mundos de distância” de nós.

3 Comments

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Anonymous
June 22, 2011 at 15:11

Trópicos contra tópicos. Isto é un falar que “trae cola”, un falar con pegamento (que xunta, pero que tamén pega). Non ha pegas que lle pór á túa pegada. Sempre haberá un filólogo á facer o traballo dun sociólogo, dun político, dun economista cando estes non quixeren facer o seu propio traballo.
apertas

G.

Anonymous
June 24, 2011 at 16:22

Eu lí a notícia em “El País”…

http://www.elpais.com/articulo/sociedad/Supremo/falla/favor/Walmart/frena/mayor/caso/discriminacion/sexual/elpepusoc/20110620elpepusoc_13/Tes

Totalmente lamentável. O pior? que nao é a excepçao, senao a regra.
Um abraço,

Azahara.

Anonymous
September 2, 2011 at 21:43

O que esperar de uma corporação que faz seguro de vida de seus funcionários (sem que eles saibam!) para lucrar até com sua morte? Uma corporação que levanta índices de morte no trabalho e pensa: “Opa, neste mês não morreu gente o suficente. Não batemos a nossa meta”. Que força as grandes corporações têm nos EUA! E a gente costuma pensar que as leis aí funcionam um pouco melhor. Se puder, assista ao documentário “Food, Inc.” (talvez já até o conheça). Parece que não há nada a se fazer contra os Gigantes.

Nathalia