Hatoum e os fantasmas
Temos, na literatura brasileira, fantasmas realmente poderosos? Alguém que os tenha imaginado com perfeição e que deles tenha aproveitado toda a força poética? Há um autor brasileiro que nos faça lembrar imediatamente de um Henry James ou, para pensar em quadrante mais próximo, de um Juan Rulfo?
Certo, há fantasmas, aqui e ali. Em certas memórias, é claro. Nos casarões que Gilberto Freyre perscruta com angústia e fascínio, indagando-lhes que foi feito do brilho de outrora. E há, é claro, um fantasma pairando soberano sobre todos, a um só tempo galhofeiro e melancólico. Mas sabemos que Brás Cubas é apenas uma invenção especiosa, feita para que os torneios metanarrativos e metaliterários de Machado pudessem caber em algum lugar, em alguma voz. Ao fim, Brás é o mais vivo dos autores, e só é um fantasma por conveniência, para que possa dar-nos aquele famoso piparote inicial.
Mas e Milton Hatoum? Desconfio que, em sua ficção, os fantasmas ganham o seu grande momento na literatura brasileira.
Não é que a Manaus de seus livros seja uma Comala, nem ainda uma Macondo. Manaus está lá, alerta, vivendo como um organismo a sua decadência inexorável, substituindo uma espécie de podridão saudável (o mundo fragmentário e sujo do Negro, suas palafitas e meandros anfíbios, onde pulsa uma vida todavia estimável) por uma podridão sempre menos digna, que é aquela da grande cidade que se moderniza, em que o que havia ainda de sólido no velho organismo cede à abstração sem sentido e à entrada em cena de um corpo estranho, ou de um tempo estranho, de uma velocidade que não é cativante, mas apenas e tão-somente destrutiva. Manaus se consome a si mesma, na narrativa de Hatoum.
A decadência da família está, mais ou menos central, em todo o seu trabalho.
Sigo entretanto pensando nos fantasmas, que é tudo que resta depois que a família se vai, uns mortos, outros simplesmente idos. Penso ainda no momento talvez mais tocante de Dois irmãos, quando Zana, com os filhos todos já fora de casa, o marido e a criada mortos, o casarão vendido, passa a chave em seu quarto e lança um olhar sobre a lona que cobre os móveis de sua intimidade. É então que ela desce as escadas, para encontrar vazias a cozinha e a sala: “Quando ela desceu, a casa parecia um abismo”.
O que é o abismo da casa vazia? O que é este vazio além do vazio? Um vazio a descansar poderosamente dentro de outro vazio, que é a ausência de móveis e gentes…? Seja o que for, trata-se de um vazio vertiginoso, porque não fornece limite algum para a queda. Eis aí a definição mais simples daquilo que é o abismo: o espaço sem fundo que nos aguarda quando todos os outros se foram.
Mas o que surge daí, desse lugar com que nos deparamos quando faz falta tudo que é familiar, tudo que é propriamente doméstico? Nossa casa (domus) é aquilo que dominamos. Mas o que acontece quando perdemos o domínio sobre esse espaço? Talvez aí resida, precisamente, muito da força da ficção de Hatoum. Uma força que paradoxalmente se revela quando a perda já se deu. Uma força que somente pode existir, e subsistir, quando já não há nada mais que sustentar.
Entretanto, diante da perda, a voz do narrador não pretende fazer renascer, proustianamente, o mundo perdido. Ao contrário. Os leitores nos sentimos como se fôssemos empurrados para a frente, um pequeno e significativo vazio sendo deixado para trás, entre nós e o que se narra, como se um gap se abrisse entre aquilo que é narrado e o leitor. O que escutamos, escutamos entrecortado, mas não por alguma artimanha da memória, e sim porque algo falta, sempre, nessa ficção.
Ao narrador de Dois irmãos falta um pai. Ou melhor, sobra um pai, o que é o mesmo que dizer que lhe falta a função e o acolhimento paternos. A sua narrativa é, de certa maneira, a tentativa de dar sentido a uma cascata de vozes perdidas, ora dominantes, ora fracas (talvez valesse a pena pensar Dois irmãos como uma harmonia duplamente regida, em tom maior e menor).
São vozes pacientemente alinhavadas pelo narrador, o amável Nael, filho bastardo que cresce entre o trabalho embrutecedor do criado e o espaço minúsculo de uma casinha no fundo do quintal onde ele devora as migalhas de conhecimento que lhe são deixadas por um possível pai e um possível avô. A genealogia mesma, aprende-se com o romance, é uma possibilidade fugidia, um encontro – ou talvez um desencontro perene – de sentimentos e de afetos, uma comunicação sempre truncada, envenenada pelo amor excessivo e pelo ódio incontido.
Talvez na literatura portuguesa contemporânea vamos encontrar, naquilo que toca aos fantasmas, um romance à altura de Dois irmãos no magnífico livro de Teolinda Gersão, A casa da cabeça de cavalo, de 1996.
Por fim, há uma frase solta, na fala angustiada mas límpida do narrador de Dois irmãos, que não consigo esquecer: “Meus sentimentos de perda pertencem aos mortos”.
O que desaparece das vistas pode sentir-se como algo que falta, ou que “faz falta” – segundo esta curiosa expressão cuja profundidade o seu uso comum nos impede de ver. Como algo pode “fazer falta”? Como se produz a falta? Talvez a falta se “faça”, e a poesia então se faça, apenas quando sabemos que o que falta não é mais deste mundo. É do outro mundo que fala Milton Hatoum.
Vale reler o último parágrafo de Dois irmãos, quando o possível Pai é visto pela última vez: “Omar titubeou. Olhou para mim, emudecido. Assim ficou por um tempo, o olhar cortando a chuva e a janela, para além de qualquer ângulo ou ponto fixo. Era um olhar à deriva. Depois recuou lentamente, deu as costas e foi embora.”