Freud, Hitler e o moralista
No início de 1933, Hindenburg nomeia Adolf Hitler chanceler da Alemanha. No mesmo ano, em Viena, aparecem as Novas conferências introdutórias à psicanálise. Na lição sobre “angústia e instintos”, Sigmund Freud regressa à importância da culpa para a constituição psíquica, e se depara com uma expressão estranha, que ele mesmo criara: o “sentimento de culpa inconsciente”, o qual explicaria a reincidência dos sintomas em pacientes recém-curados, como se uma mola os levasse de volta àquilo que o psicanalista julgava ter suprimido, e que eles no entanto pensam merecer. Falando para uma plateia completamente imaginária (ao contrário das Conferências introdutórias à psicanálise, as “novas” conferências jamais foram lidas), Freud lembra que os “problemas levantados pelo sentimento de culpa inconsciente, suas relações com moral, pedagogia, criminalidade e delinquência, são atualmente o campo de trabalho preferido dos psicanalistas”. Eis então que o escritor brilhante se revela (aqui, na tradução de Paulo César de Souza):
Nesse ponto inesperado, saímos do submundo psíquico para a praça pública. Não posso conduzi-los adiante, mas quero detê-los com um último pensamento, antes de nos despedirmos por esta vez. Habituamo-nos a dizer que nossa civilização foi edificada à custa de impulsos sexuais inibidos pela sociedade, que em parte são reprimidos, é verdade, mas, por outro lado, são utilizados para outros objetivos. Também admitimos, apesar de todo o orgulho por nossas conquistas culturais, que para nós não é fácil cumprir as exigências dessa civilização, sentirmo-nos bem nela, pois as restrições instintuais que nos são impostas constituem um pesado fardo psíquico. Ora, o que percebemos quanto aos instintos sexuais vale em medida igual, ou talvez maior, para os outros instintos, os de agressão. São sobretudo esses que tornam mais difícil a vida em comum dos seres humanos e ameaçam a sua continuidade; a limitação da agressividade é o primeiro, talvez mais duro sacrifício que a sociedade requer do indivíduo. Vimos de que maneira engenhosa é obtida essa domesticação do recalcitrante. A instauração do Super-eu, que toma para si os perigosos impulsos agressivos, como que estabelece uma guarnição numa área inclinada à revolta. Por outro lado, numa consideração apenas psicológica, é preciso reconhecer que o Eu não se sente bem quando é sacrificado desse modo às necessidades da sociedade, quando tem de sujeitar-se às tendências destrutivas da agressividade, que de bom grado ele dirigiria contra os outros. Isso é como um prosseguimento, no âmbito psíquico, do dilema “devorar ou ser devorado”, que prevalece no mundo orgânico. Felizmente os instintos agressivos nunca estão sós, mas sempre amalgamados com os eróticos. Nas condições da cultura criada pelos homens, esses últimos têm muito a mitigar e prevenir.
Freud é um estrategista. A agressão é aquartelada pelo Super-eu, e funciona contra o Eu, o qual, se pudesse, sairia matando. Mas a compreensão desse estranho mecanismo repressivo e civilizador (seis anos depois, Norbert Elias publicaria O processo civilizador) exige um passo atrás, quando, na mesma conferência, Freud se detivera sobre o masoquismo e o sadismo, ao lembrar que a agressividade podia voltar-se para o interior, no primeiro caso, ou voltar-se para o exterior. Mais um momento alto do texto:
E damos com a importância da possibilidade de que a agressividade talvez não ache satisfação no mundo exterior, porque depara com obstáculos reais. Então ela poderá retroceder, elevando a medida de autodestruição vigente no interior. Veremos que isso acontece realmente assim, e como é importante esse processo. Agressividade impedida parece envolver graves danos; realmente é como se tivéssemos que destruir outras coisas, outras pessoas, para não destruirmos a nós mesmos, para nos guardar da tendência à autodestruição. Sem dúvida, uma triste revelação para um moralista!
Deixemos para lá o moralista de Freud. Vivemos do balanço entre a força empregada para fora, contra o mundo e seus obstáculos, e a força que nos come por dentro, como uma úlcera. Para salvar-nos, há que avançar e saber recuar. O ir e vir da agressividade nos mantém vivos, no limiar da morte. Freud brinca com a plateia inexistente, e lembra que não é Schopenhauer:
Não afirmamos que a morte é o único objetivo da vida; não deixamos de ver, junto à morte, a vida. Reconhecemos dois instintos fundamentais e admitimos para cada um sua própria meta. Como os dois se mesclam no processo da vida, como o instinto de morte é levado a servir aos propósitos de Eros, sobretudo no seu voltar-se para fora como agressão, são tarefas deixadas para a pesquisa futura. Chegamos apenas até o ponto em que tal panorama se abre à nossa frente. Se o caráter conservador é próprio de todos os instintos sem exceção, se também os instintos eróticos querem restabelecer um estado anterior, quando tendem à síntese do que é vivo em unidades sempre maiores – também essa questão teremos que deixar sem resposta.
A unidade perdida leva ao impulso, que por sua vez leva para fora e para dentro, ao sabor de forças que não controlamos. A civilização, então, não será a homeostase, nem a pacificação desses irrequietos exércitos interiores. A civilização é um espasmo: contração e expansão incessantes. A impossibilidade de regressar, de voltar-se contra si mesmo, levará à morte.
Freud deixou Viena no dia 4 de junho de 1938, e chegou dois dias depois a Londres, onde morreria com câncer em 1939. Nos anos seguintes, suas irmãs mais velhas, que ficaram em Viena, morreram: três em Treblinka, uma em Theresienstadt. Até o fim, Sigmund parecia acreditar que o avanço iniciado encontraria algum limite.
Oxalá.
1 Comment
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“O ir e vir da agressividade nos mantém vivos…” E a vida que alimenta-se da destruccao. Grande texto.