Falo da PUC: dos padres e de Zé Celso

Às vezes convém meter o bedelho onde não se foi chamado. Mas convém entrar pela lateral, de leve.
A atual crise na PUC-SP revela um traço interessante de uma tensão moderna, que põe em litígio o poder temporal da Igreja. Recapitulando: uma “lista tríplice” com os mais votados candidatos a reitor é enviada ao “grão-chanceler” (o arcebispo de São Paulo, Dom Odilo Scherer), que por sua vez decide escolher o terceiro nome, afrontando o desejo da maioria da comunidade universitária. Não discuto a propriedade dos processos seletivos para os altos cargos universitários. Apenas me chamou a atenção um falo que se ergueu insuspeitamente no meio do debate e que, salvo engano, diz muito sobre o que está em jogo.
A Folha de S.Paulo traz, no Tendências & Debates de hoje, um artigo assinado por três conhecidos professores de Filosofia da PUC-SP e, do outro lado, o artigo de um teólogo jovem (cronologicamente jovem), Edson Luiz Sampel, que defende, armado até os dentes, a posição “confessional, católica e pontifícia” da universidade, arrostando “opositores vorazes” (ah, o frisson dos conservadores, as asas que suas palavras ganham quando eles sentem o vento gelado da novidade entrando pelas narinas!).
A “voracidade” em questão é identificada em todos aqueles que defendem, “debaixo do inconsistente vexilo da independência acadêmica”, um “relativismo cristão ou cristianismo light [sic]”, ou então “outras ideologias”.
A utilização de uma palavra antiga e desusada (vexilo!) faz pensar que estamos diante de uma guerra: o exército de Brancaleone dos modernos perfila sob o estandarte do relativismo, ameaçando o catolicismo fundamental (ou mais propriamente fundamentalista) dos que defendem “os valores autenticamente católicos”.
E lá vamos nós: “autenticamente católicos” para quem, cara pálida?
Uma olhadinha no bom (e temperado) texto dos três filósofos, que é o reverso da tendência representada pelo jovem teólogo, permite lembrar que há uma história do que sejam valores “autenticamente católicos”. Convém lembrar que a efervescência política teve na mesma PUC um espaço importante sob a ditadura, quando o cardeal-arcebispo de São Paulo era D. Paulo Evaristo Arns, não D. Odilo Scherer. A lembrança leva a pensar no que significou, na história recente do catolicismo, o arrefecimento da Teologia da Libertação, a par de uma impressionante guinada à direita que já estava na escolha de Karol Woytila para papa no final dos anos setenta, até essa pá de cal em qualquer espírito autenticamente ecumênico que foi a escolha de Ratzinger, o atual Benedito XVI.
O jovem vociferante do artigo da Folha lembra a encíclica “Populorum Progressio” para lembrar que a Igreja é perita em humanidade. Não custa recordar que a encíclica, do tempo de Paulo VI, é caudatária das ondas do concílio Vaticano II, que se iniciara sob João XXIII ainda nos anos sessenta, num momento em que a Igreja se abria para a força de um discurso popular à esquerda. Exatamente o oposto do que representa hoje o espírito autoritário de muitos dos que falam em nome dos valores “autenticamente católicos”.
Mas eu queria mesmo é falar de um falo, que há de me levar a um sublime destruidor de falos. Explico-me. O jovem articulista, nos seus arrebiques retóricos, defende o direito de Dom Odilo de definir o novo reitor: “O grão-chanceler, autoridade máxima da universidade, nomeia um deles. Fá-lo com cabal discricionariedade, tendo em vista o bem maior da instituição”.
Ah, o poder do inconsciente… O que é esse “fá-lo” que surgiu de repente, atando os cordões do zelo canônico do articulista? Imagino que ele, o articulista, jamais aceitaria a ideia de que o falo lhe subiu do inconsciente e grudou na locução que conecta o verbo ao objeto da ação: “fá-lo”. Mas deixemos isso pra lá, até mesmo porque conservadores em geral não gostam do inconsciente.
Na mesma Folha, descubro que Zé Celso Martinez invadiu ontem o Pátio da Cruz com um gigantesco boneco, espécie de “piñata” a ser destroçada pelas mãos ávidas do povo, que quer devorar o Padre. O agitador diz que “o papa é um ditador” e que “a Igreja castra”, enquanto “o catolicismo é antropófago”.
Aqui é preciso um pouco de erudição para entender a dignidade profunda do gesto de Zé Celso. É preciso lembrar de Nietzsche, para quem o verdadeiro respeito não estava no salamaleque reverente diante do poder, mas no ato livre que corre sobre o risco da irreverência.
A equação é complexa: a Igreja castra, embora o falo surja na fala daquele que defende o ato discricionário do Padre. Mas tudo se explica, quando se pensa que a louvada discricionariedade (isto é, a escolha autorizada daquele que é capaz de distinguir bem) é um ato de poder, e que este mesmo falo (o “fá-lo” autoritativo do Padre) de repente se confronta com a emergência de um outro falo, erguido irreverentemente, como possibilidade de devoração do Pai – e do pau, e do mais importante pau que é a cruz chantada no pátio da pátria.
Há falos e falos. Há fazeres e fazeres, quereres e quereres. Mas há também um falo simbólico na fala desconexa dos que dançam, um “fá-lo” cujo objeto é cambiante e inseguro e, por isto mesmo, mais livre e mais cheio de possibilidades. O outro falo (um “fá-lo” que talvez lembre uma das mais tristes figuras da história política brasileira, capaz de dizer que “fi-lo porque”…), o outro falo provém da autoridade do Pai castrador, que quer “congruência” ali onde pode reinar, ainda, o poder fertilizante do caos.
É bem verdade que, depois da festa, há que varrer o pátio e despertar a comunidade. Mas, por via das dúvidas, eu prefiro a comunidade que dançou e gritou àquela que temeu cair no samba.
Como dizia um místico, humilde poeta, maior da nossa tribo: “Por que eu extático desfira/ Em seu louvor versos obscenos”.
Evoé, Zé Celso!

4 Comments

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Anonymous
December 2, 2012 at 21:55

Você tem problema de alfabetização?

Pedro Meira Monteiro
December 3, 2012 at 13:53
– In reply to: Anonymous

Prezado “Anônimo”,
Não, acho que não. Tenho a impressão de que tenho consciência sobre o que falo.

Cleverton Barros
December 4, 2012 at 08:57

Esse também seria um problema da autonomia nas universidades brasileiras? Ou é só uma questão de uma instituição dita confessional? Boa reflexão.

Anonymous
December 4, 2012 at 10:09

A falta de espaço entre os parágrafos dificulta a leitura já cansativa no computador. Eu não tive esse problema porque uso a extensão Clearly do Chrome mas outras pessoas podem deixar de ler por esse pequeno detalhe.

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