Fala a verdade

O texto a seguir saiu na Celeuma, revista do Centro Cultural Maria Antonia da USP, e pode ser consultado também aqui.

Como falar a verdade? A ética da ficção em Divórcio, de Ricardo Lísias

Talvez porque eu tenha chegado recentemente de Berlim, tenho a sensação de que algumas imagens podem estar mais carregadas de memória que outras. Na magnífica exposição na fundação Topographie des Terrors, no local que um dia abrigou a sede da Gestapo, fotografias junto a um muro desvelam a história da Alemanha nazista. É inevitável perguntar pelo destino e pelo sentido quando vemos os olhares dos judeus, e mesmo de alguns alemães não judeus, expostos nas vexaminosas humilhações públicas da década de 1930. Pergunto-me se haveria disposição em enxergar também, na mirada resoluta de Hitler ou de Himmler, algo além do desejo macabro de dominar o mundo. Talvez nosso temor de repetir o gesto totalitário nos faça ver neles o monstro assassino, esvaziado de qualquer humanidade. Lembrei-me do cineasta Lars von Trier, quando esboçou dizer que “compreendia Hitler” e se tornou persona non grata no Festival de Cannes, onde era exibido seu Melancholia. Questões éticas saltam às vistas, sempre que nos vemos diante daquilo que pretende revelar a verdade.

Chegando de Berlim, encontro na caixa postal um exemplar do novo romance de Ricardo Lísias, Divórcio. Abri-o e não pude mais fechá-lo. Poucas vezes lembro-me de tamanha absorção na leitura, ao menos quando adulto. Afinal, as crianças em geral “mergulham” nos livros mais facilmente que nós. Ou talvez os bons livros sejam justamente aqueles que permitem repetir o gesto infantil de neles perder-se, como se a superfície que nos separa da ficção fosse rompida e, subitamente esquecidos do que restou lá fora, descobríssemos que o narrado é o lugar onde estamos, talvez o único de onde podemos compreender a realidade. É sempre tentador (e poético) imaginar que sairíamos da ficção como de um sonho. No entanto, a literatura contemporânea ensina que as margens desses territórios nunca são muito claras. Mexer com os personagens pode ser uma forma de enfrentar fantasmas que a ficção torna reais. O paradoxo descansa aí: feitos personagens de papel, os fantasmas se tornam reconhecíveis e permitem ver, sob nova luz, os personagens que foram deixados para trás, naquilo que chamamos de realidade.

Talvez pela proximidade da Alemanha, a leitura do romance me lembrou experimentos narrativos de recuperação do terror. Há que guardar as devidas proporções, é claro: Divórcio é de fato sobre o divórcio, enquanto os livros em que eu pensava expressam nada menos que as artimanhas dos vivos diante do espectro da Morte. Eu pensava em Günter Grass, em W. G. Sebald, e também em Herta Müller. Mas tinha, diante de mim, a observação de Sebald, para quem as fontes que relatam o arruinamento das cidades alemãs ao fim da guerra seriam pobres, “notáveis por uma curiosa cegueira à experiência”, como se lê em sua História Natural da Destruição. Eis algo que também aprendemos com Lísias: a literatura acontece no espaço entre as imagens e a experiência, ali onde descansa tudo o que a memória não pode recompor senão quando se faz, ou se torna literatura. É preciso contar. Se não há compromisso com a ficção, nada do que se viu pode ser vivido como história.

À semelhança de Sebald, Lísias intercala ao texto imagens de um arquivo privado, as quais, no caso do escritor brasileiro, recompõem uma estranha e inexplicada saga familiar, com direito à “travessia” original de um patriarca, à perda e à reconstrução da fortuna no Brasil, e ao desmoronamento do patrimônio nas mãos de netos e bisnetos. O desapego de Lísias, o narrador (porque há pelo menos dois Lísias operando em Divórcio, o autor e o narrador), a qualquer forma de poupança, é revelador de uma postura diante do mundo. Impulsionado pelo autor, Lísias-narrador supõe que poupar seja sempre um gesto amesquinhador, para então contar, com calculado desdém e deleite, que uma das últimas frações da fortuna familiar, recebida quando ainda estudante, foi gasta em suítes de luxo nos motéis de uma cidade do interior paulista.

Como se queimasse em suas mãos, o dinheiro fica melhor aplicado no prazer da fruição imediata que, por sua natureza mesma, é irrepetível. A contenção disciplinada seria apenas o temor de perder tudo. O medo impediria o risco, proibindo-nos de apostar todas as fichas aqui e agora. Entretanto, a possibilidade de apostar dispara uma bateria de perguntas éticas que se voltam contra o indivíduo: o que fazer do pouco ou do muito que carregamos? Que tipo de covardes somos quando amealhamos para o futuro? Estamos roubando de nós mesmos sempre que guardamos?

Curioso que a relação do narrador com o futuro seja tão rarefeita, do ponto de vista material. O “cafofo” em que Ricardo Lísias (o narrador) sobrevive após o divórcio é uma espécie de fortaleza feita de livros e móveis velhos. Não há nada em que se segurar ou apoiar, depois que ele descobre numa gaveta, ao acaso, o diário de sua mulher, que o desqualifica impiedosamente. Como o nome do narrador é o mesmo do autor (Ricardo Lísias), o leitor poderá desconfiar tratar-se apenas de uma história privada, um divórcio litigioso com o qual nada temos que ver. E se é apenas mais uma história privada, por que ler Divórcio?

A força do romance está justamente em transformar a dor numa questão política. A mulher é também personagem, e o desenrolar da trama não se resume ao plano privado. Apenas reagir ao drama do indivíduo seria construir um outro texto difamatório, espécie de “contra-diário” em que Ricardo Lísias (o narrador, como duplo do autor) respondesse às agressões da mulher, em cujo diário se lê que o marido é um “retardado”, incapaz de proporcionar qualquer das aventuras que ela espera do casamento. No entanto, Divórcio é uma outra história, recaindo obsessivamente sobre os limites éticos enfrentados sempre que nos vemos diante do outro, ou ao seu lado. Na trama do diário encontrado e revelado na ficção, é impressionante a cena em que a mulher escreve o seu vitupério na própria cama de lua-de-mel, enquanto o marido dorme a seu lado, sem que possa esboçar a menor reação diante do texto amargo que se gesta.

O tema da responsabilidade diante do outro, e da importância de escrever, sustenta a trama de Divórcio. Insisto, contudo, tratar-se de ficção. Ler este ou qualquer outro livro de Ricardo Lísias como um roman à clef é uma forma de não compreender o alcance de sua literatura, cuja força está na maneira como aproxima o dado real da trama ficcional, sem no entanto deixar que eles se toquem, mesmo quando eles sejam supostamente coincidentes; sem deixar, enfim, que o círculo que dá ao livro seu caráter de ficção se rompa totalmente. Como signo da natureza ficcional da trama, Lísias, o narrador, é subitamente assaltado por uma dúvida, temendo estar na pele de um dos personagens de seus livros, como se nos lembrasse que a realidade só ganha espessura quando se torna ficção. O que não o impede de provocar curto-circuitos em que o narrador parece ameaçar deixar a ficção, lembrando que as palavras, em si, não são ficcionais:

Ainda que eu me contradiga em outro lugar desse texto e no que eu possa eventualmente dizer sobre essa merda toda em que me joguei, o diário que reproduzo aqui é sem nenhuma diferença o mesmo que xeroquei antes de sair de casa. Aliás, não há uma palavra de ficção nesse romance.

Entretanto, o perigo de cair de vez no fosso da ficção segue rondando, sempre que buscamos dar sentido à realidade (“essa merda toda”), e sobretudo quando nos recusamos a deixar que algo de inexplicável permaneça nela. O fato de não ser compreensível, justamente, torna a realidade fonte de ficção: trazida ao romance ela pode ser lida, num momento em que, a despeito das eventuais semelhanças, não se trata mais da realidade (daí o paradoxo da ficção que não contém “uma palavra de ficção”). Em Divórcio, abandonamos o pacto realista, o qual, gostemos ou não, guia nossas mais caras expectativas de acesso à “realidade”, como se tal coisa fosse estranha à própria fabulação. Mas a questão ética não cala: o que fazer com a “tal coisa” que nos permite fabular, e que nos torna a todos potenciais contadores de histórias?

No plano da narrativa, trata-se de fugir à noção do texto como algo neutro. Para essa visão ingênua, as palavras seriam a superfície que deixaria “transparecer” o mundo exterior, como se a literatura se desconectasse da realidade e fosse apenas uma camada translúcida, tão mais eficiente quanto menos visível. Mas tudo funciona diferente em Lísias, porque no entrelaçamento e na aproximação entre realidade e ficção reponta a questão ética: o que pode fazer a ficção com aquilo que não é ficção? Até onde podemos ir – os narradores que sempre somos quando contamos uma história – nessa aproximação do mundo não ficcional? Mas contar histórias é sempre produzir ficção, mesmo quando queremos dizer o que realmente se passou?

Não à toa, o interesse pela literatura argentina ajuda Ricardo Lísias a compor o narrador de Divórcio. Como no caso clássico do Pierre Menard de Jorge Luis Borges, a composição de um texto (o Quixote de Pierre Menard) resulta no texto original (o Quixote de Cervantes, idêntico ao outro). A vantagem da “cópia” sobre o “original”, no caso, está no fato de que aquilo que um dia correspondeu a seu tempo (Cervantes escrevendo o Quixote) no momento seguinte é apenas um capítulo possível da realidade (Pierre Menard escrevendo um Quixote duplamente original, porque alheio a seu tempo, e ainda assim tão genial quanto o texto de Cervantes). Ao transformar a experiência original (que de início não sabemos nem podemos saber se é ficcional ou não) em quinze capítulos, ou nos quinze “quilômetros” de uma corrida angustiante e liberadora, Lísias-Pierre Menard opera a arte da ficção que é também a arte da leitura, afinal só compreendemos o que aconteceu lendo o que se passou. Pela literatura, regressamos à realidade e somos capazes de enxergar o que antes não víamos. Voltando, descobrimos a realidade como uma espécie de ponto de partida original, umbigo de todas as ficções. Paradoxalmente, tal ponto a que chamamos realidade só pode oferecer-se como uma ficção original. Que essa ficção umbilical – a única de onde pode partir o escritor – seja por vezes mais desconcertante que qualquer outra ficção, é o que explica o assombro do narrador, ao descobrir-se dentro de um de seus livros, personagem de si mesmo.

A verdade do sujeito não estaria portanto na “realidade” exterior ao ato de escrever, mas apenas naquele momento em que a “realidade” se deslocou e se tornou ficção. Não há verdade antes desse momento, como não há uma realidade imóvel e original, impermeável à ficção. Mesmo o mais violento dos atos se torna verdadeiro apenas quando o investimos de algo que o ultrapassa, quando, enfim, ele não é mais “a realidade” apenas, mas uma realidade “bruta”, “terrível”, “ameaçadora” etc. Os adjetivos, ainda que pálidos diante da realidade, a tornam mais próxima, enfim palpável. Somente pela linguagem somos capazes de reconhecer o sofrimento do outro, e sentir o golpe que o atingiu. Divórcio faz pensar na etimologia da palavra perplexo: aquele que se deixou atravessar pelo golpe, per-plexo.

Trata-se de um poço muito fundo e difícil de explorar, se quisermos evitar a vulgata da ficção pela ficção, ou a ideia tola de que tudo é ficção.

Por um lado, poderíamos reagir sugerindo ser loucura a negação da realidade em prol de uma ficção inescapável, como se só houvesse a ficção e pudéssemos ter certeza de que Lísias é tão ficcional quanto o Dom Quixote. Mas isso apenas nos converteria em psicóticos, incapazes de compreender os limites impostos diariamente pela realidade – “essa merda toda” em que nos metemos, desde o momento em que nascemos. Inspirado por Melanie Klein, um psicanalista pensará talvez que estou brincando ao reclamar um estatuto fecal para a realidade do nascituro, mas é bem isso que Divórcio anuncia: estamos fadados, desde a mais tenra origem, a lidar com a adversidade, que às vezes vem sob formas assombrosas e nos obriga a usar tudo o que temos. Entretanto, e voltando aos adultos, o psicótico é, no limite, inimputável, porque mergulhou na sua ficção e de lá não arreda. Já nós outros – os que podemos regozijar-nos de ser apenas neuróticos – ficamos aqui deste lado, com o abacaxi da questão ética no colo: o que fazer da realidade? Como mantê-la à distância, quando ela é assustadora ou insuportável? Mas em que implica o ato de distanciar-nos dela? E o que fazemos com os outros, quando nos distanciamos da realidade?

Lísias (o autor) explorou o tema em seu romance anterior, O céu dos suicidas (2012), no qual é central o flerte com a loucura. Talvez se possa dizer que a demência se configura no momento doloroso em que percebemos haver deixado aquele porto original para trás, não nos restando nada além do mar de ficção em que navegamos, cada vez mais distantes. O louco olha para outro lugar, não para o ponto onde estão as coisas e as pessoas. O equilíbrio mental, por mais instável que sempre seja, talvez se resuma a saber regressar, de modo a sempre responder à esfinge que, incessantemente, repõe a sua questão. E cada resposta será uma história nova na qual tentamos nos encontrar. Dessa forma, perpetua-se o rio dos relatos, único fluxo capaz de nos sustentar diante da realidade, evitando que afundemos, quando a deixamos para trás. O neurótico regressa constantemente à realidade. Já o destino do psicótico é o hospício. E a ficção moderna está entre um e outro.

Desvestida de qualquer ficção, a realidade se torna um acontecimento natural e talvez uma monstruosidade. A barbárie tem a ver com essa possibilidade, isto é, com o momento em que nos descolamos da realidade, quando o golpe desfechado contra o outro é apenas um movimento mecânico e exterior, diante do qual não nos é dado fazer coisa alguma. No limite, tem a ver com a possibilidade de ver o outro esfacelar-se sem dirigir-lhe a palavra, e sem que o ocorrido deva converter-se numa história. Sem que haja perplexidade, em suma.

Por outro lado, a questão ética pauta a leitura de Divórcio: se há um porto original para o relato, terá então existido uma mulher, um diário, um Ricardo Lísias e um divórcio? Se assim é, o divórcio tornado livro é também uma história pública, que circula pela comunidade de leitores, sem que a voz do outro, que teria se tornado personagem, seja ouvida. Ou melhor, a voz do outro (a mulher que, suspeitamos, pode existir fora do livro) é exclusivamente a voz fria e fantasmática do diário, incorporado ao livro. A questão ética de Divórcio é a questão da ética da ficção: se a invenção não prescinde da realidade como porto original, a ficção será sempre uma espécie de viagem à roda desse porto, ora aproximando-se, ora distanciando-se dele. Mas ninguém sabe de Alonso Quijano, fonte do Dom Quixote. Já Ricardo Lísias está por aí, escrevendo, ensinando, publicando. Entretanto, a menos que mergulhe no mar de fofocas que envolve a feitura de Divórcio, o leitor jamais saberá se o diário é verdadeiro e se o narrador é o autor, isto é, se Ricardo Lísias é Ricardo Lísias. Portanto, jamais encontrará a linha que separa a ficção da realidade.

Se déssemos por certa a inexistência do diário, a máquina das questões éticas se desligaria, ou se tornaria mais débil. Afinal, por que preocupar-se com personagens de ficção? Mas a literatura de Ricardo Lísias vive exatamente do embaralhamento e da vertigem que nos toma sempre que nos sabemos demasiado próximos da realidade. Aí estão os limites que a ética deve explorar, mas está também o alcance político da ficção, que interpela vivos e mortos, para não deixá-los jamais à vontade.

Obviamente, quanto mais próximos da realidade, mais responsáveis somos pelas histórias que esse porto original, por imperscrutável que seja, permitiu criar. Entretanto, o círculo infernal da ficção está em negar, ou talvez escamotear, a existência das pessoas que habitam aquele espaço original. Tal espaço, chamemo-lo ou não de “realidade”, é tudo aquilo que fica fora da ficção. A questão ética então regressa a todo vapor, armada sobre a viagem a que a ficção convida: o que foi deixado para trás, sem voz?

Esse “outro” sempre existe. Mesmo que se trate de uma ficção tradicional, isto é, mesmo que se atribua aos personagens existência apenas no reino da ficção, ainda assim há sempre um rasgo do real diante do leitor. Sem tal dado, aliás, a ficção seria incompreensível, como o discurso do louco que não podemos entender, a menos que um Pierre Menard o rescreva de forma genial, de modo a produzir um outro texto que é, ao mesmo tempo, o texto original. Em outras palavras: isolado, o discurso do louco é incompreeensível, mas sua reconstituição literária (que é produção, e não simples re-produção) o torna, senão compreensível, ao menos dotado de sentido. A ficção, afinal, funciona não como tecido transparente, mas como a única superfície em que podemos vislumbrar o poço sem fundo em que se meteu quem deixou para trás a realidade e se esqueceu desse porto de origem. A ficção, uma vez ainda, fala da distância entre nós e aquilo que não compreendemos ou não suportamos, e que às vezes chamamos de real.

Não se trata apenas do risco de lembrar de algo ou alguém que “se parece” a este ou àquele personagem. Insisto ser empobrecedor imaginar que Ricardo Lísias, o autor, confunda-se ao narrador. A questão central é que sua literatura permite elaborar uma série de perguntas sobre a ética de todo aquele que, ao escrever, pretende posicionar-se diante da realidade. Por isso Divórcio é também sobre o jornalismo, porque oferece um espelho deformante e desconcertante a todos os que professam aproximar-se da verdade por meio das palavras.

Ao propor uma ficção que tematiza a proximidade do real, Divórcio nos mostra que quem escreve sobre a realidade carrega uma bomba-relógio. A questão ética, sempre prestes a explodir, sugere não haver relato possível – mesmo e principalmente quando estamos certos de que falamos da realidade – sem que se construam personagens e contextos. Sem que, portanto, abandonemos a crença ingênua na transparência de um discurso que, como num passe de mágica, nos daria acesso àquele porto original. Como sabemos os leitores de jornal, não há bom jornalista sem a consciência desse deslocamento, isto é, sem a percepção do peso que tem a ficção na escrita que “retrata” a realidade. Retratar o “outro” é sempre redesenhar um lugar original, o que deveria lembrar-nos que, relacional e transitório, o discurso sobre o outro nunca é absoluto. A ética do jornalista (um escritor a flertar diuturnamente com a realidade) está em explorar os limites dessa distância, isto é, em sopesar a linguagem que reveste o ocorrido (aquilo a que ingenuamente chamamos de “real”) e lhe dá sentido. A ética está portanto em saber que, falando do outro, eu o traio. É dos limites dessa traição que trata Divórcio.

Mas o “outro”, sugere Ricardo Lísias, é inatingível, e falar por ele será sempre uma tremenda irresponsabilidade. Falamos por nós mesmos, exercitamos o nosso ponto de vista, segundo as perspectivas e os olhares que somos capazes de desfechar de onde estamos. A questão não está em colocar-se na pele do outro, mas em colocar-se em sua própria pele diante do outro. Em Divórcio, Lísias expande o jogo metafórico desenvolvido no romance anterior, explorando a perda da pele, a carne viva em que se encontra o marido que de repente se descobre traído. Não uma traição qualquer, na cama de algum motel distante, mas a traição profunda de quem despreza aquele que dorme ao seu lado.

Em Divórcio, o narrador Ricardo Lísias simula sua defesa diante de um advogado que ele não vê, mas intui, engravatado e ridículo, em seu linguajar pomposo. Trata-se do juridiquês que todos conhecemos, tão permeável à escrita defeituosa da grande maioria dos advogados e empregados cartoriais no Brasil. É fundamental que o narrador desmonte esse discurso, não apenas naquilo que ele contém, mas na sua própria forma. Ao receber um e-mail do advogado, em que este diz que, “no curso do divórcio”, seria “advogado das duas partes”, e que “em tese” deveria estar presente “no ato de assinatura do documento”, o narrador desanda a falar, num procedimento verborreico que os leitores de Ricardo Lísias conhecem bem:

Então, senhor [X], não sei de qual curso o senhor está falando. Muito menos de qual tese. Vou dizer uma coisa, meu caro [X], curso de direito hoje em dia tem em qualquer esquina. Não me venha falar em tese, tese quem fiz fui eu. Aliás vou te dizer: não entendo por que tenho que chamar advogado de doutor. Que tese o senhor doutor fez? E não me venha dizer que é advogado dos dois, porque foi contratado pela transtornada. Você só pode ser igual a ela. Então não me venha falar em curso, porque você fez um que muita gente faz em todas as esquinas do mundo, tese você não tem nem ideia do que é. Sabe, [X], você no fundo me acha um idiota por ter entrado nessa situação. Não precisa me dizer, cale a boca.

Virada do avesso, a linguagem deixa ver o lado ridículo da formalidade, assim como a expectativa de “alta cultura” e de “modos” da ex-mulher não logra esconder sua ignorância de fundo, revelada nos lugares comuns que ela é capaz de disparar. Lugares comuns, aliás, aos quais o narrador regressará num insistente ritornello, como se martelasse, a cada esquina do texto, a ideia de que se trata de uma pessoa, ao fim e ao cabo, desprezível. Mais uma vez, estamos diante de uma criatura que, sem que saibamos conclusivamente se é “puramente” ficcional ou não, é personagem (e portanto presa) de Ricardo Lísias, o escritor, que por seu turno move e constrói o narrador, Ricardo Lísias. Evidentemente, tal pureza ficcional inexiste, porque todo personagem é uma composição de traços que o escritor já viu em algum lugar, mesmo e principalmente na ficção de outrem. Mas e se o personagem ficcional e o real estiverem demasiado perto, quase colados? O problema, então, é que o desprezo, que dá à personagem da ex-mulher seus piores contornos, constitui a única via de acesso que nós leitores podemos pegar. Portanto, o acesso ao outro (que, insisto ainda uma vez, raramente podemos saber se é “puramente” ficcional ou não) é oferecido pelo escritor, que, ao construir o narrador, monta também seu próprio inquérito.

A ética tem a ver tanto com a denúncia quanto com a possibilidade de calar-se. Denunciar pode ser relativamente fácil, mas recuar, para explorar as razões de um ato violento, é difícil, exigindo uma espécie de retração poética, quando o autor (e aliás não somente o autor de um livro) deixa na sombra o incompreensível. Mas deixar na sombra o inexplicável de um ato violento não é uma forma de compactuar com a violência? Quando devemos, dedo em riste, apontar o algoz, mostrando a todos que ele é um monstro? E quando devemos deixá-lo à própria sorte, supondo que talvez não se trate de um monstro? Explicar totalmente a realidade é o sonho e a crença de todo terrorista. E nenhum de nós escapa desse pesadelo.

O problema se torna especialmente delicado porque a ficção de Divórcio parece estar sempre à beira da realidade, lembrando portanto que o “outro” pode ter existido e ainda existir naquilo que, justamente, está fora da ficção. Não é casual que Ricardo Piglia, uma das inspirações de Lísias, imagine o documentário como a “vanguarda do cinema contemporâneo”. Afinal, o bom documentarista abandonou há muito a crença numa linguagem transparente. Mostrar alguém, tornando-o personagem de um documentário, é também saber a distância que nos separa dele. Trata-se de um verdadeiro ensaio de aproximação, sorte de baile cujo passo é ditado pelo diretor, que no entanto tem diante de si alguém que baila também, isto é, um personagem real.

Nesse caso, o desafio ético está em saber bailar, mesmo e principalmente quando o par é o próprio inimigo. Há que saber deter-se logo antes de denunciá-lo, como se pudéssemos poupar as palavras e conter a ânsia de falar, refreando aquela ira santa que move montanhas, mas que pode também levar ao crime. O problema é também dos jornalistas e, não à toa, a ex-mulher do narrador de Divórcio é uma jornalista. Entretanto, para além do retrato pouco lisonjeiro da profissão, certas questões se colocam, prementes e atuais: na urgência diária do trabalho jornalístico, a inquirição ética seria um luxo raro? Na azáfama da redação, na rapidez da comunicação digital, e na ânsia por dizer e ser reconhecido pelos pares, quem pode perguntar pelo valor do silêncio, pela ética do recuo, pelo respeito àquilo que não se compreende? Afinal, são tão raros os momentos em que é realmente preciso avançar e dizer tudo, sem economia ou cortes. De uma forma ou outra, notícias de jornal escorrem aos montes, indiferentes, e não há por que parar diante delas. A menos que você seja um poeta chamado Manuel Bandeira, é claro. (Bandeira escreveu um “Poema tirado de uma notícia de jornal”, e publicou-o em Libertinagem, em 1930.)

Os escritores de ficção estão de certa forma protegidos de tal impasse ético: para que parar, se o personagem é ficcional? Tudo é possível e permitido, quando se tem a ficção nas mãos. Talvez o Marquês de Sade ou Oscar Wilde não concordassem com a ideia, mas essa já é uma outra história.

Um tom kafkiano por vezes atravessa o relato de Lísias, enquanto seus personagens raramente ganham densidade psicológica. Via de regra, não são personagens construídos do interior para fora, mas sim criaturas chapadas, signos do absurdo apresentados de supetão ao leitor, como se lhe fossem jogados à face, à maneira de um tapa. O único personagem realmente denso e profundo, que se apresenta aos poucos, em idas e vindas tortuosas (Lísias é um exímio escritor), é o próprio narrador. A força e o limite de sua ficção estão aí, inseparáveis: só é possível falar de uma perspectiva, a do narrador; quanto aos demais personagens, dão-nos a impressão de criaturas que se movem sob a mira de quem escreve, como peças num tabuleiro de xadrez. Em sua ampla consideração da ficção de Lísias, Fábio de Souza Andrade detectou o equilíbrio instável em que se firma seu estilo, “cindido entre uma ironia cândida, simplificadora, e o transporte de uma linguagem turbulenta, pura tempestade e ímpeto” (“A raiva do enxadrista”, piauí n.85, out. 2013).

Não se trata de uma escrita cerebrina, embora quase nunca ela chegue a ser lírica, por exemplo. Diversamente, é a escrita nervosa de quem luta por manter-se na superfície da sua ficção, para somente então poder voltar à realidade, convencido de que não foi ainda engolido por sua lógica cruel. Num movimento paradoxal, somente a ficção devolve o autor a um lugar distinto daquele do narrador:

O que faz então com que Divórcio seja um romance? Em primeiro lugar, Excelência, é normal hoje em dia que os autores misturem à trama ficcional elementos da realidade. Depois há um narrador visivelmente criado e diferente do autor. O livro foi escrito, Excelência, para justamente causar uma separação. Eu queria me ver livre de muita coisa. Sim, Excelência, a palavra adequada é “separar-me”. Do mesmo jeito, tentei me lembrar de muitos momentos do relacionamento com a minha ex-mulher que tinham sumido da minha cabeça. Nesse caso, não consegui. Enfim, Excelência, o senhor sabe que a literatura recria outra realidade para que a gente reflita sobre a nossa. Minha intenção era justamente reparar um trauma: como achei que estava dentro de um romance ou de um conto que tinha escrito, precisei criá-los de fato para ter certreza de que estou aqui do lado de fora, Excelência. Não vivo dentro de um texto meu.

O falso tom didático diante de sua Excelência (o juiz, no tribunal da leitura?) é uma profissão de fé na literatura: somente ela não nos deixa afundar.

Numa reflexão sobre os “sujeitos trágicos”, e sobre literatura e psicanálise, Ricardo Piglia relata a cena em que James Joyce recorre a Jung para aconselhar-se sobre a filha, Lucia Joyce, que acabaria psicótica, morrendo numa clínica na Suíça, em 1962. Como Lísias, Jung conhecia e admirava Joyce. O pai, entretanto, lhe apresenta os textos de Lucia, dizendo que “o que ela escreve é o mesmo que eu escrevo”, porque naquele momento ele estava compondo o Finnegans Wake, texto “totalmente psicótico”, dirá Piglia. A resposta de Jung a Joyce é certeira, iluminando também a ficção de Ricardo Lísias: “mas onde você nada, ela se afoga”.

Após a literatura, voltamos à realidade como quem regressa à superfície para respirar. Ou, na metáfora de O Céu dos Suicidas, ampliada em Divórcio, o narrador volta a possuir sua pele, que de um golpe lhe fora roubada.

Haveria muito a explorar, ainda, sobre o papel da repetição na organização do texto de Lísias. Se voltarmos mais no tempo, seu antepenúltimo romance, O Livro dos Mandarins (2009), é um bem sucedido show de repetições. E na novela “Anna O.” (2007), antes ainda, era já evidente a fatura de uma escrita que talvez se possa nomear psicótica, feita de reiterações que terminam por cravar o sujeito num ponto de que ele não consegue sair. É uma literatura de marteladas, incisiva, cortante, quase sempre profunda. E mesmo quando ela é rasa ou engraçada, sentimos o abismo de que estamos escapando, como se deslizássemos pela corda-bamba sem rede de proteção alguma, ora risonhos ora calados.

Como já disse em outro lugar, não tenho dúvida de que Ricardo Lísias está entre os melhores escritores da literatura contemporânea no Brasil. Lido Divórcio, tenho agora poucas dúvidas de que, se quiser, ele pode sair desse lugar para tornar-se um dos melhores escritores da literatura brasileira, nem mais nem menos. Mas aí valeria a pena pensar no que a crítica rápida e certeira de Adriano Schwartz apontou: o deslize para um tom panfletário ameaça perder o romance, sobretudo no seu final (“Tema e narrativa evoluem juntos em romance ‘Divórcio’, de Ricardo Lísias”, Folha de S.Paulo, Ilustrada, 3 ago. 2013). A ira contra o meio de que provém a ex-mulher do narrador se transforma numa explicitação da plataforma política do autor: “Não entendo por que um determinado grupo profissional pode ter licença para tomar atitudes que o ordenamento jurídico repudia”; ou então, “Acredito que a arte deva desafiar qualquer tipo de poder. Divórcio é a minha profissão de fé contra essas neoditaduras.”

Não que tais ideias se casem mal ao espírito do romance. Mas elas diminuem sua agudeza, porque explicitam desnecessariamente, ameaçando bater forte ali onde o golpe seria muito mais duro se ficasse no plano da ficção, que é alusivo mesmo quando o narrado se parece desconcertantemente à realidade. Para dizê-lo em poucas palavras, a explicitação da intenção ameaça desfazer o encanto da ficção, a qual, como bem sabe Lísias, não se sustenta na mentira, mas justamente na proximidade com a realidade. Ao gritar contra a neoditadura da imprensa, Ricardo Lísias sai da ficção, como um Quixote que, desajeitado, deixasse o livro. E já aprendemos que o Quixote fica melhor, e é mais eficaz, dentro do livro. Mesmo que, afinal, Dom Quixote seja a história de um leitor que abandona as novelas de cavalaria para vivê-las na realidade.

Atrás eu sugeria que, impulsionado pelo autor, o narrador se proibia de poupar, vendo nisso o sinal de um bom caráter. Dotado de uma pequena fortuna, ele a dispensa tão rápido quanto possa. O signo moral dessa dispersão seria virtuoso, se se tratasse de recusar a ilusão de poder advinda da posse. Mas, no caso, trata-se da impossibilidade, ou da incapacidade de refrear o impulso que leva à satisfação imediata, o que é também uma forma de falar da explicitação do desejo, ou daquilo que cremos ser o nosso desejo. Mas quem sabe realmente o que quer? A satisfação imediata poucas vezes tem a ver com o desejo. Nesse sentido, a acumulação e a retenção podem ser formas interessantes de recusar a imediatez, implícita no ato de dizer tudo. Munidos daquilo que evitamos dizer, talvez possamos negociar mais eficientemente com a realidade que teima em se mostrar estranha e desagradável.

Não posso deixar de ver a dificuldade de Ricardo Lísias de conter-se, e sua insistência em dizer (e gastar) tudo, como parte desse mesmo complexo. Mas isso não anula o poder de sua literatura. Apenas deixa ver o projeto que, conforme nos ensina a própria literatura, será tão mais eficaz quanto menos se pareça a um libelo de acusação. Mesmo porque a agulha penetra mais fundo quando o paciente está distraído. E pensar a realidade, como aliás pode sugerir Divórcio, tem a ver com deixar-se estar, com distrair-se e correr, esquecendo o relho por alguns minutos, diminuindo talvez a tensão das rédeas, exigindo menos retidão e justiça, para que, ao fim, os personagens em torno do narrador possam respirar. O alívio será grande, e pouco se terá perdido. Assim se reafirma o poder da literatura, que é ainda e sempre um espaço à margem, como deve ser o mundo dos que não suportam a torpeza da realidade.