Existência barata

Saiu na Folha de S.Paulo, no dia 26 de fevereiro (Ilustrada, p.E-7):

Em Azul-corvo, Adriana Lisboa fixou um tom, sem deixar de surpreender. Como nos anteriores Rakushisha e Um beijo de colombina, a narrativa é discreta, sem lances heróicos ou impactantes, e a estória é simples. Por trás da simplicidade se estende uma trama profunda de sentimentos.

As influências literárias não se explicitam, porque a boa literatura prescinde de qualquer exibicionismo. Nela, os diálogos com outras obras apenas se adivinham. Assim, o desconforto que atravessa Azul-corvo pode evocar antecedentes ilustres.

De início, Vanja se vê num lugar estranho: “Não havia nenhuma brisa, nenhum hálito que viesse me aliviar um pouco entrando pelas frestas da blusa, levantando a barra da saia ou sacudindo meu cabelo com promessas de salvação. Em compensação, eu nunca via baratas”.

Não houve já uma barata que disparou pensamentos sobre a vida e a morte, o tempo e o corpo, a espera e o sentido, a corrupção e a redenção? Não são estes os temas de A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector?

A boa literatura muda sutilmente o eixo das grandes obras. Vanja deixa as onipresentes baratas de Copacabana para encontrar, no desértico Colorado, outras misteriosas mutações, utopias e distopias, desaparecidos e presentes, desterrados e semi-órfãos.

O desassossego, o gozo diante da matéria e o fim da transcendência, que deram tom à prosa de Lispector, cedem a um mundo de perguntas ingênuas e agudas, como se no lugar do arrebatamento místico se flagrasse um olhar desencantado e despretensioso. A mágica de Adriana Lisboa está em cultivar o desencanto sem perder de vista a poesia. Em sua prosa se sentem, delicadas, as crispações da alma dos personagens, que conhecemos graças a uma emigrada adolescente.

O desdobramento temporal é sua pedra de toque: a narradora atualiza o olhar quase adulto que foi o seu, quando descobriu, entre línguas e culturas diversas, a paisagem norte-americana e a falta de um pai. Os anos entre o momento fictício da escrita e a estória narrada fazem com que um leque de dúvidas se abra, confrontando as razões proclamadas do mundo.

Pelos olhos de uma jovem, a quem a escrita permite rever o tempo em que começava a deixar de ser jovem, testemunhamos que escrever é uma forma de perguntar pelo destino: o que foi e o que era para ter sido; o que não foi e era para ser definitivo. Eis as pontas que unem tudo: o desejo impossível do regresso e o terreno possível em que a vida floresce.