Espreguiçando-se
Espreguiçando-se
Há algum tempo me intriga o final de “A metamorfose”, naquele exato momento em que a jovem senhorita Samsa se levanta e se espreguiça, depois de um passeio de bonde em que ela e os pais aliviaram-se definitivamente do peso de Gregor, aquela “coisa” que estivera por tanto tempo esparramada no quarto, e de que a empregada finalmente se livrara.
É claro que a alegria juvenil da jovem contrasta a morte estúpida do irmão, mas o fato é que o espreguiçamento condensa um gesto de desafio, uma espécie de recordação macabra de que a alegria da família se construirá a partir do silêncio em torno de Gregor Samsa.
A repressão dos sentimentos e a afirmação narcísica do perfeito retrato da família são as duas faces de uma mesma moeda, que a espreguiçadela da jovem traz ao primeiro plano. Um primeiro plano que, em Kafka, está na ultimíssima cena.
O original traz: “Und es war ihnen wie eine Bestätigung ihrer neuen Träume und guten Absichten, als am Ziele ihrer Fahrt die Tochter als erste sich erhob und ihren jungen Körper dehnte”. (Na tradução de Modesto Carone: “E pareceu-lhes como que uma confirmação dos seus novos sonhos e boas intenções quando, no fim da viagem, a irmã se levantou em primeiro lugar e espreguiçou o corpo jovem”.)
É a língua de Freud. Portanto, há que pensar nesses traumas, ou melhor, nesses sonhos que o leitor imediatamente relacionará àqueles sonhos notoriamente intranquilos que precedem a metamorfose de Gregor Samsa.
Mas a intriga, para mim, resume-se à espreguiçadela, gentil e grácil, da irmã. No fim de tudo, este é o gesto que eleva os sonhos certos dos pais à sua máxima potência. É a vitória – criminosa – dos desejos paternos.
PS
- Há alguma sutileza que me escapa, mas que pressinto, e que talvez se perca ligeiramente na tradução de Modesto Carone (e em várias das traduções ao inglês que consultei). “Ziele ihrer Fahrt” parece ser o “fim da viagem”. Mas um leitor de Kafka poderá desconfiar que se trata, afinal, do objetivo também da viagem, daquilo que se trama subterraneamente, no inconsciente da família. “unbewußt”, aliás, é o advérbio que aparecera logo antes para modular um verbo (verständigend) que faz pensar em toda a tradição hermenêutica, submetida no entanto à descoberta imensa do inconsciente. Pois então: está provado que só é possível filosofar em alemão.
- Cada vez mais me agrada a tradução de Donna Freed: “And it was like a confirmation of their new dreams and good intentions that at their journey’s end their daughter jumped to her feet and stretched her young body.”