Entrevista – Portuguese Newsletter
A entrevista a seguir foi publicada no número de outono da Portuguese Newsletter da AATSP (American Association of Teachers of Spanish and Portuguese). Foi um grande prazer conversar virtualmente com a Luci Moreira. É estranho, mas super interessante, olhar para trás e descobrir uma coerência que não sabemos se existe mesmo, ou se é uma invenção da memória. (Mas, pensando bem, o que é a memória senão a invenção provisória de alguma coerência?)
LM — Você poderia falar um pouco sobre seus estudos, sua carreira no Brasil e nos Estados Unidos aos leitores da Portuguese Newsletter?
PMM — Minha carreira como estudante foi muito errática, embora eu não ache isso ruim. Inicialmente pensei em cursar Filosofia, mas não passei no vestibular. Por coincidência, naquele ano (1988) a Unicamp abriu um segundo vestibular com vagas remanescentes e eu entrei no curso de Ciências Sociais. A ideia de que podíamos ficar duas horas discutindo um único parágrafo de Marx foi para mim uma grande descoberta, tanto por Marx quanto pela exegese dos textos, que me cativou para sempre. Depois tive umas tantas crises vocacionais e acabei me transferindo para o curso de Economia, com uma passagem-relâmpago pela Biologia, para finalmente regressar a Ciências Sociais. Eu me graduei em 1993 e logo em seguida fiz um mestrado em Sociologia, também na Unicamp. Foi quando comecei a trabalhar com a obra de Sérgio Buarque de Holanda. Aos poucos fui percebendo que me atraía a fronteira entre as ciências sociais e a literatura. Os professores de que eu mais gostava eram os que mergulhavam na vida interior dos textos. Em 1996, logo após defender o mestrado, enfrentei um novo dilema profissional e acabei atravessando a rua, indo parar no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, onde fiz meu doutorado em Literatura Comparada, que eu defenderia em 2001, tendo no ano anterior defendido um segundo mestrado na França, na Universidade de Versailles. Àquela altura já era claro que o ensino da literatura seria meu ganha-pão. Foi Jussara Quadros, que na época ensinava português em Princeton com Clémence Jouët-Pastré, que me avisou do concurso aqui. Eu prestei e, como se diz por aí, the rest is history. Mas me lembro que a sensação de contraste foi grande, porque eu não conhecia nada do sistema universitário norte-americano. Devo ter sido o único candidato que perguntou, durante uma visita ao campus, o que significava a palavra “tenure”. Lembro que meus futuros colegas me olharam espantados. É claro que eu tive que aprender bem rápido o que significava aquilo…
LM — No papel de chefe de departamento, durante estes tempos de pandemia, como você vê a situação do ensino universitário em geral e, mais especificamente, de português no seu departamento?
PMM — Graças a um trabalho de equipe, nós conseguimos fazer do português uma língua cidadã em Princeton. Nossas reuniões de departamento, por exemplo, acontecem nas três línguas (espanhol, inglês e português). Tive a sorte de que o chair, quando cheguei, era Angel Loureiro, um intelectual galego que sempre amou e respeitou a língua portuguesa. Quanto à atual crise de saúde, nós a enfrentamos como podemos. As aulas e as atividades online têm funcionado bem, dentro dos limites. O mais difícil para mim é manter o balanço entre “estar presente”, como chefe, e ao mesmo tempo não invadir o tempo e a privacidade das pessoas. Elas estão cansadas e é preciso diminuir, tanto quanto possível, as atividades. Nunca pensei que diria isso, mas sinto saudades das conversas de corredor, daquela sociabilidade do dia a dia que não obedece a nenhum plano específico. Os desafios da pandemia são enormes, mas acho também que ela vai nos deixar uma experiência interessante, mais aberta ao que podemos fazer remotamente, tanto no plano burocrático quanto acadêmico. Tenho pensando (e até escrito) a respeito dessa “presença na ausência”, que me parece ser o que estamos experimentando.
LM — Você poderia elaborar um pouco sobre o seu departamento: o projeto Brazil LAB da Princeton University e outras iniciativas para atração e retenção de alunos de português?
PMM — O espaço da língua portuguesa é muito sólido no nosso departamento, graças à equipe maravilhosa que temos, e graças especialmente ao programa de português dirigido por Nicola Cooney. Pessoalmente, sempre achei importante que vivêssemos em sinergia com o espanhol, aproveitando sua força como programa. Volta e meia converso sobre isso com colegas do campo e fico animado quando encontro ressonância entre o que fazemos em Princeton e o que se faz em outras universidades (acho essa troca de experiências muito importante). Mas às vezes fico surpreso ao perceber que o espanhol pode ser visto como um potencial inimigo. Reconheço que cada lugar tem sua história, embora eu ache que é possível viver como o mais fraco nessa equação sem que os resultados sejam necessariamente ruins. Penso que na convivência diária com colegas do espanhol temos que nos abrir para não sermos engolidos, e isso nos fortalece. Se resistimos muito, nunca aprenderemos a nos dobrar. Trata-se de uma mecânica delicada, que a vida na universidade norte-americana nos ensina, e que pode também ser encontrada num conceito que aprendi em Princeton e acabei levando ao Brasil, quando traduzi o ensaio de Arcadio Díaz-Quiñones sobre a “arte de bregar”, que é uma forma de amoldar-se sempre que necessário, mantendo intacto apenas aquilo que nos parece inegociável. (O ensaio aparece num livro que traduzi e organizei em 2016, para a Companhia das Letras, que se chama A Memória Rota.) Acho que os nossos estudantes se sentem atraídos por essa posição mais “flexível” do português, que é uma língua “menor”, mas que pode ser “maior” exatamente porque não carrega o fardo de precisar ser dominante. O Brazil LAB (LAB é um acrônimo: Luso-Afro-Brazilian Studies) foi uma consequência direta dessa militância pelos estudos lusófonos. Nós o fundamos há três anos e atualmente João Biehl o dirige com grande competência. É um centro dinâmico, interdepartamental e multidisciplinar, que deve florescer ainda mais nos próximos anos. Mesmo com a crise atual, temos conseguido manter bons números e muito interesse pelo português. Não há segredo: é o trabalho coletivo que nos leva para a frente.
LM — Falar sobre teoria literária e literatura brasileira evoca críticos como Alfredo Bosi e Antonio Candido. Que papel eles tiveram e ainda têm na sua formação profissional e no seu trabalho como crítico literário?
PMM — São duas referências luminosas para mim. Com Antonio Candido tive contatos esporádicos e muito significativos, em torno, sobretudo, de uma paixão comum: Sérgio Buarque de Holanda. Admiro sua visão cristalina, mais apolínea que dionisíaca, mas ainda assim atenta aos tormentos e às revoltas do que é humano. A associação indelével entre cidadania e literatura é algo que ele nos deixou como um grande tesouro, a realizar-se quando o mundo e o Brasil aprenderem a ser generosos. Alfredo Bosi, mais que simples inspiração, é amigo, mestre e confidente. Nunca fui seu estudante, mas aprendi muito com seu método de ler e pensar. A publicação de Dialética da Colonização, em 1992, quando eu era estudante na graduação, mexeu muito comigo. Vi que era possível amar desbragadamente o objeto literário sem deixar de ser crítico, e era possível também estudar as forças vivas do texto como testemunho das contradições do sujeito. Minha visão da literatura brasileira se alterou bastante desde que vim para cá, mas sempre mantive vínculos profundos com Bosi, que aliás visitou os Estados Unidos uma única vez, a meu convite, em 2008, quando publicamos, numa série coordenada por Victor K. Mendes, em tradução de Robert P. Newcomb, Colony, Cult and Culture. Em Bosi encontro ainda a inspiração de um estilo de pensamento e escrita em que a clareza e a exigência fazem par à convicção e aos valores. Não é uma combinação prosaica.
LM — Como você considera o ensino de crítica literária hoje? Os cânones da literatura ainda são ensinados ou os departamentos estão se reinventando para atender à demanda das novas gerações? O que está sendo ensinado hoje? Você concorda com a afirmação de que o ensino de literatura hoje não é mais como no tempo de nossos pais?
PMM — O mundo muda e a forma de ensinar muda, embora sempre mais lentamente do que deveria. No caso da academia norte-americana, a onda dos estudos culturais nas décadas de 1980 e 1990 deixou uma marca (a meu ver) saudável nos departamentos de línguas e literaturas. Ensinamos muito mais que a literatura, mas nem por isso ela deixa de ser central na forma de ler o mundo. Quanto ao cânone, é urgente chacoalhá-lo. Há dois anos, nós mudamos radicalmente a lista lusófona dos exames gerais dos estudantes de doutorado em Princeton, e ela hoje é bem balanceada em termos de gênero, raça e geografia. Antes de alterá-la, eu ofereci um seminário que era também uma oficina para rediscutir a lista. Nós estudamos exclusivamente mulheres, com apenas duas exceções: Machado de Assis, que estava presente como fonte secundária, porque nosso foco era o estudo de Helen Caldwell, e Joaquim Brasil Fontes, com seu ensaio sobre os fragmentos de Safo de Lesbos. De resto, lemos autoras como Carolina Maria de Jesus, Carol Rodrigues, Ana Cristina Cesar, Hilda Hilst, Isabela Figueiredo, Clarice Lispector etc. Cada aula tinha, como “epígrafe”, uma tela de Paula Rego, que nos orientava. Atualmente ensino outro seminário em que partimos de uma intuição de Walter Benjamin sobre a posse dos brinquedos. Nele, vamos lendo Sophia de Mello Breyner Andresen, Luandino Vieira, Conceição Evaristo, Mário de Andrade, Cidinha da Silva, e vamos trabalhando também com artes plásticas e música como parte do nosso novo “cânone”. Aliás, pela primeira vez um álbum fonográfico entrou na lista dos “generals” do doutorado: Os Afro-sambas de Vinicius e Baden, que no seminário deste semestre ouvimos ao lado dos poemas de Sophia, perguntando-nos sobre os diferentes “mares” que podem surgir numa poética transatlântica. Estamos nos divertindo muito, e algumas sessões serão abertas ao público, aproveitando a pandemia. Na próxima primavera, eu e Lilia Schwarcz vamos oferecer juntos um curso que se intitula, justamente, “The Canon Re-signified”.
LM — Parte de suas publicações refletem memória e identidade e, em especial, têm um foco na história cultural brasileira. Você revisita essas questões em A queda do aventureiro (1999)—sua primeira publicação a respeito—e Signo e Desterro (2015), analisando o texto de Sérgio Buarque de Holanda. Também Machado de Assis e Mário de Andrade se destacam em suas publicações. Você acha que a sociedade brasileira ainda remonta às ideias desses autores? Como os três entraram na sua vida?
PMM — Sérgio Buarque foi uma leitura já na universidade. Mário e Machado eu li quando era adolescente. Acho que cada um diz algo diferente, mas eles se cruzam. Em Machado e Mário a questão racial aparece ora às claras, ora não. Machado é um gigante, mas o que gosto dele é sua capacidade de falar baixinho das coisas mais tremendas, como se elas fossem simples. O gesto irônico dele é irrepetível. Estou agora organizando, com Hélio Guimarães, um volume sobre Machado de Assis para a coleção “Approaches to Teaching World Literature” da MLA. Já Mário de Andrade é um autor que me deleita pela forma desavergonhada como ele ama a ideia de Brasil, mesmo sabendo que é uma violência chamar um país de “Brasil”, no singular. Mas esse lado nacionalista dele é o menos interessante. Gosto mesmo do Mário dilacerado, perturbado. Estudei isso num longo texto em que o comparei a Sérgio Buarque, e que saiu no Brasil pela Companhia das Letras, em 2012, junto com a correspondência anotada dos dois. Ali ficou claro para mim que Sérgio aposta na inconstância dos caminhos, na errância que leva à ideia de uma civilização sempre moldável, que vive e se resolve, não sem violência, no aqui e agora. Já Mário tem, diante de si, o desejo de enxergar um mundo além, ou seja, a fronteira é para ele o limite de um outro mundo que só a fé, a poesia e a cultura popular podem revelar. O catolicismo de Mário de Andrade é tema ainda pouco explorado. Foi o que tentei fazer nesse estudo em que comparo os dois.
LM — Você publicou cinco livros como autor, dez como editor, foi editor convidado de três revistas, publicou quase cinquenta artigos em revistas acadêmicas, trinta capítulos em livros, artigos em revistas e jornais, traduções, prefácios, introduções, entrevistas: fértil e hermético, ao mesmo tempo. Como combinar essas facetas? Onde o professor deixa o escritor e vice-versa? Como você combina a sua vida de professor, administrador, escritor, crítico literário, tradutor e ensaísta? Quais são seus planos para o futuro?
PMM — Gosto da ideia! Fértil e hermético… É engraçado, porque se há um movimento novo na minha trajetória intelectual, ele tem a ver com tentar ser menos hermético. O livro de que mais gosto, dentre os que publiquei até aqui, é Um Moralista nos Trópicos, que saiu pela Boitempo em 2004. É um estudo comparativo em que analisei a recepção das máximas de La Rochefoucauld na França do século XVIII e no Brasil do século XIX. Acho que é minha melhor intuição: como um autor “moralista” é recebido por outro, “moralizador”, e como os fios abertos por La Rochefoucauld no século XVII são recebidos com espanto e ódio pelo Visconde de Cairu, na aurora do Império brasileiro. Mas quando releio esse livro, vejo que abusei do pensamento em círculos… Em suma, fui “hermético”. É verdade que a experiência do hermetismo acabou me levando a um exercício literário mais aberto, quando, em 2016, publiquei, pela E-galáxia, Conta-gotas, um livro de máximas e reflexões em que as “formas breves” servem a problematizar a literatura e o mundo. Acho que aí eu já estava tentando caminhos novos, em que o “escritor” e o “acadêmico” são um só. Nesse contexto entra “Pena Vadia”, expressão machadiana com que nomeei meu blog, em que reúno textos meus que saíram em revistas como Paiuí e Serrote, e em jornais como a Folha de S.Paulo. A prática ensaística permite manter distância dos vícios da linguagem acadêmica, fazendo com que eu tente me aproximar do leitor. Não quer dizer que o hermetismo seja uma carta fora do baralho, mas nada impede que o pensamento complexo dê origem a um texto leve, no qual filosofia e crítica se misturam e ficam rentes à crônica, que por sua vez é um gênero voltado para o dia a dia, menos retorcido pelo peso do saber livresco. Um novo resultado desse esforço é um livro que a editora Relicário deve publicar no ano que vem, intitulado Nós Somos Muitas: Ensaios sobre Crise, Cultura e Esperança. Nele, procuro entender como o otimismo da década de 2000 foi cedendo, até que chegássemos ao presente horrível que nos une. Pergunto-me ainda como a própria esperança pode se transformar nessa espera agônica e cheia de sentidos, em que tantxs de nós nos vemos hoje. É também um projeto coletivo, com textos meus e pequenas notas em inglês de Flora Thomson-DeVeaux, ex-aluna que se tornou uma grande tradutora e amiga, e que criou um efeito de “estranhamento” muito interessante no livro. Além disso, Nós Somos Muitas traz imagens não figurativas do artista mineiro Rogério Barbosa, e uma malha de sons produzidos pelo mais brasileiro dos norte-americanos, o artista e músico experimental Arto Lindsay. O livro terá inserções de código QR: você aponta o celular e ouve um som que complementa ou problematiza o texto e suas imagens. Esse tipo de projeto multimídia me interessa cada vez mais. Por isso também tenho experimentado com outros meios, jogando com texto e imagem no Instagram, por exemplo. Eu poderia falar de vários outros projetos recentes e em andamento, em que se cruzam crítica, imagem e música. Mas sinto que é melhor convidar, a quem tiver generosamente nos lido até aqui, a dar uma olhadinha no meu website. Mais que repositório, gosto de pensar nele como um reflexo desses caminhos que tenho tentado trilhar, aproximando línguas, tradições e disciplinas diferentes. É por aí que vou caminhando. Muito obrigado, Luci, pela oportunidade.