El país del diablo

Nos bons filmes há quase sempre uma cena iluminadora, dessas que a um só tempo encerram e cifram tudo aquilo que, sentimos, está no filme. Talvez um dia esqueçamos o enredo, o título, os personagens do filme. Mas dele restará ainda aquela única cena, tão completa quanto enigmática.

O último filme de Andrés Di Tella, El país del diablo, é um documentário sobre “la frontera de la civilización”. O tema remete a algo distante no tempo e no espaço: a “conquista del desierto” pelas forças oficiais argentinas, e o massacre dos índios na região dos pampas. No entanto, um espectador brasileiro sentirá uma rara familiaridade com as imagens e os personagens: há um corte euclidiano em quase tudo, das paisagens inóspitas (são lindas as tomadas de espaços abertos e “vazios”, amiúde invadidos, bem ao estilo de Di Tella, pela voz ou pelo corpo do documentarista) até as fotografias, que fariam um belo par à iconografia de Canudos. E, por fim, a figura euclidiana por excelência: esse Estanislao Zeballos que inicia sua entrada pelos pampas com o discurso civilizatório armado, e termina enamorado da tragédia de suas gentes, sentindo fundo o peso do crime hediondo que a máquina do discurso civilizado mal apaga.

É de rastros, apagamentos e revivescências fantásticas e fantasmáticas que fala o filme de Andrés Di Tella. E o que me fica é a ideia do documentarista refazendo os passos imaginários de Zeballos, ele também um “documentalista, como yo”. Mas a cena que a mim resume tudo é a caminhada pelas salinas, em Salinas Grandes.

A mistura de secura e humidade, a luz agressiva do branco refletindo tudo, e uma beleza que esconde o poder corrosivo do sal: eis aí o espaço onde nenhuma vida é possível, onde se entra pensando já em sair, em escapar daquilo que é agressivamente estéril. Beleza estéril: eis aí, talvez, o fim da civilização.

Produzido originalmente para a televisão pública argentina, o filme recentemente ganhou uma versão cinematográfica, que em breve estará disponível, e a que ontem uns poucos amigos tivemos a oportunidade de assistir. Conversando com Andrés, descobri que, tivesse sido produzido apenas para o cinema, o filme talvez tivesse explorado mais as tomadas largas. E eu me pergunto se não teria também explorado mais o silêncio. De toda forma, silêncio ou tomadas demoradas, haverá sempre muito no “vazio”. Afinal, a ausência absoluta assusta e fascina.

Mas eu entendo: é difícil aceitar o silêncio, quando se trata de buscar o que restou do avanço da civilização, quando qualquer som, qualquer signo no caminho, merece ser resgatado, antes que se perca. Aí o fio de angústia que atravessa esse filme delicado.

Andrés Di Tella tem um blog: http://fotografiasdeandresditella.blogspot.com/

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