Duas meninas (abandonadas)
Adriana Lisboa conversava esta semana em Princeton com os alunos de um curso intermediário de português que haviam lido seu Azul Corvo. Uma das questões tocou um ponto sensível: na busca de um pai real nos Estados Unidos, Vanja, a personagem-narradora do romance, teria abandonado um espaço eminentemente feminino, no Brasil. Os homens são sempre fracos ou distantes, nos livros de Adriana? Penso naquela palavra curiosa com que Guimarães Rosa fala de um pai que quer desaparecer, mas teima em voltar: “diluso”. No neologismo de Rosa descansa a ilusão, aquele que se enganou e aquele que engana. É sempre difícil reconhecer que o poder do pai pode ser uma enganação.
Releio a emocionante história de Catarina, no livro de João Biehl, Vita: Life in a Zone of Social Abandonment. A ilusão, ou o que é delusório, ganha aqui outras conotações. Catarina é abandonada pela família numa espécie de hospício nos arredores de Porto Alegre, em meio ao momento mais vigoroso do movimento antimanicomial no Brasil da redemocratização. Discutia-se então, profusamente, a perda da subjetividade, enquanto se questionava o fácil diagnóstico da esquizofrenia, o que por sua vez reacendia o eterno debate sobre a psicose. Os psicóticos fogem do poder da realidade? Enclausuram-se num mundo irreal, que já não guarda laços com a realidade que existiria apenas fora do hospício?
Não foram poucos os que, no auge dos debates da antipsiquiatria, associaram essa fuga da realidade à ficção. Catarina vive na sua ficção? Mas então ela teria direito de existir apartada de “nós”, que vivemos o embate duro da realidade, seus limites, suas zonas de sombra, sua profunda injustiça? Mas ela não vive, exatamente, o limite extremo de tudo isso? Catarina não foi uma dupla vítima? Presa, por um lado, dos laços espúrios entre a família e o “sistema”; vítima, por outro, de um momento “democrático” incapaz de reconhecer os limites de uma concepção altissonante do “sujeito”. A etnografia recorda, com delicadeza: o sujeito não existe fora de um rede complexa, que a noção moderna de “direitos” mal compreende, porque não se abre às “paisagens morais” do indivíduo, às articulações de “desejo, dor e conhecimento” que o mantêm conectado a um passado doloroso, resistente à simbolização. E quem realmente pode falar daquilo que se abandona?
O abandono da realidade é a entrada na zona de sua significação, ali onde as palavras ou as formas querem dizer algo que escapa à linguagem crua dos relatórios. As outras linguagens – a literatura, as artes – correm atrás do que restou pelo caminho, daquilo que foi rejeitado e ficou escondido, e que no entanto, paradoxalmente, permanece à vista, ao menos enquanto insiste em viver, recriando as peças do passado pela memória.
Vanja é uma menina subitamente solitária, obrigada, pela vida (e pela morte), a deixar a mãe para trás, no país que fica. A geografia do abandono seria também a de Adriana Lisboa? A busca do pai, se correta a leitura da estudante que fez a pergunta sobre Azul Corvo, talvez seja a constatação da profunda insuficiência de um mundo em que a proximidade materna resguarda o sujeito do perigo. Como se o pai a buscar fosse a outra face de uma história de abandono, diante da equação fria que nos diz que só nos tornamos sujeitos quando nos descobrimos distantes da proteção. O curioso é que a literatura de Adriana Lisboa, para muito além de Azul Corvo, versa sobre a possibilidade e o desejo teimoso de erguer uma casa provisória em lugares e tempos insuspeitados, como se em cada diminuto espaço pudéssemos reencontrar a proteção perdida, agora diante do outro, e de nós mesmos. Exatamente aquilo que o esquizofrênico – ou como quer que o chamemos, ou classifiquemos, a partir daí – tem dificuldade de encontrar.
Nos anos heroicos da luta antimanicomial, quando o nome de Foucault ainda brilhava, não era incomum supor que o louco pagava injustamente os pecados da coletividade, como bode expiatório de um sistema que queria controlar a tudo e a todos, institucionalizando a mente e vigiando o corpo dos sujeitos. Concepção brilhante, embora insuficiente, do espaço político.
São graus diversos de abandono, os de Catarina e Vanja. Mas me emociona que, na personagem real como na fictícia, uma pequena casa se erga na linguagem. Ambas se aninham numa rede de estórias – audível quando se trata da ficção, e muito difícil de escutar, no caso real. A constatação do abandono leva à busca de espaços sutilmente dotados de sentido, pequenos lares (fogos) erguidos no plano acidentado da vida.
Que ironia triste, cruel, que o arremedo de hospício em que o desaparecimento aguarda Catarina – ela sim, real, diante da morte – se chamasse Vita: como observa João, a palavra “vida”, numa língua morta.
Mas Catarina tinha, como outros pacientes, uma malinha em que levava as suas coisas mais íntimas, que não largava jamais.
Para onde vão as estórias que guardamos nessa mala, nos seus objetos e na sua rede de sentidos? Quem as ouve, e quem liga para esse estranho conteúdo?
Talvez o insuportável, tanto quanto as feridas reais do abandono, seja a dúvida sobre o destino dessa estranha mala. Quem a herdará?
Leio, no Houaiss, a etimologia de “herança”:
lat. haerentĭa ‘coisas vinculadas, pertences’, neutro pl. de haerens,entis, part.pres. de haerĕo,es,si,sum,rēre ‘estar ligado, fixado, prender, segurar, agarrar, aderir’