De Benjamin a Fernandinho: para além da alegoria, o meio de campo
Doze anos morando fora são suficientes para produzir mudanças. Os intervalos longe do país fazem com que cada nova visita se converta num ritual. Primeiro, há a adaptação rápida, ligada à descoberta dos novos sinais (aquela banca de jornais estava ali antes?), e ao contraste dos tempos (a dificuldade de se readaptar imediatamente à violência do trânsito brasileiro, por exemplo).
Depois, há a adaptação lenta, relacionada à longa duração. Em resumo, as correntes profundas continuaram correndo enquanto estávamos fora, e agora é melhor acelerar, do contrário se perde o bonde da história. Alguma coisa aconteceu, mas não há sinais claros do que foi, nem se trata apenas de acertar o relógio.
Esta segunda adaptação é a mais interessante, justamente porque difícil e complexa. É como tomar o pulso, sem nunca poder sentir o que o indivíduo está vivendo: ouvir os conhecidos, as pessoas nas ruas e no comércio, e perceber que algo esteve rolando todo esse tempo, enquanto estávamos fora. Nem a leitura dos jornais, nem a comunicação com amigos e colegas brasileiros, nada dá conta dessa corrente, quando se está longe. É preciso estar aqui.
Quando cheguei, em maio, o vai-ter-copa-não-vai-ter-copa ainda marcava o tempo e acionava o pêndulo das paixões. Contudo, refeito o meio de campo, parece que a Copa vai bem, obrigado. Nem o mais atrabiliário espectador há de negar que, nos campos, a bola está rolando, e no geral tem sido uma maravilha vê-la. O que não quer dizer que a FIFA ou a CBF tenham se regenerado, ou que o dinheiro do BNDES tenha sido bem empregado. Mas o que acontece dentro de campo, como sempre, dá senhas preciosas do que se passa fora dele.
É uma tentação danada alegorizar tudo. Outro dia, enquanto assistia à fragorosa desclassificação da Espanha, confessei a um amigo que, para mim, Marcelo era o verdadeiro intérprete do Brasil. Como uma inauguração às avessas, seu gol contra, na estreia com a Croácia, era o sinal inequívoco do nosso estado, e talvez do nosso Estado. Qual espasmo, o fluxo irreal de entusiasmo que eu via há dois anos se convertia agora num empuxo macabro, movimento reverso da esperança, e comprovação da esquizofrenia pátria: ou esta coisa chamada Brasil funciona plenamente, ou para e afunda. Não há meio termo. Aliás, a fórmula wisnikiana do “veneno remédio” segue fulgurante. Com exceção de uns raros textos nos jornais, ficamos no vai e vem infantil entre a fanfarronice da pátria-amada-agora-é-hora-de-torcer-e-lembrar-que-somos-um-povo-unido, e o mau humor crônico de quem jamais se entrega à complexidade do jogo. Tudo permeado pelo baixo nível geral da imprensa e temperado, aqui e ali, pela hidrofobia de direita que comanda a pena dos articulistas que bem conhecemos.
Enfim, ao iniciar, a Copa parecia apenas confirmar a oscilação entre o sucesso e o descalabro, sem admitir coisa alguma entre esses dois polos neuróticos. A própria estreia fornecera mais uma peça para meu futebol alegorizante: a vaia a Dilma seria o sinal do seu isolamento, num estádio tomado por um público preconceituoso. Não se tratava apenas de representação da população (o fato de que o Itaquerão se parecesse a um corredor de shopping center em bairro chic, no caso), mas de leitura das pulsões, das correntes profundas. Assim, o xingo tosco e violento seria a senha de uma separação definitiva entre o periclitante projeto petista e a posição rancorosa de quem só sabe ver o mundo com um cartão de crédito nas mãos e os bolsos recheados. Na minha alegoria, o povo estaria de fora, alheio à encrenca da vaia, sabendo que afinal o que se dá em campo é mais interessante que o seu entorno, aí incluídas não só as arquibancadas brancas, mas também as famigeradas “manifestações”. (NB. Por aquilo que “se passa em campo”, refiro-me aos noventa minutos de bola rolando, porque a Abertura, afinal, é só uma peça para agradar velhinhas. Diga-se de passagem que o indiozinho que pedia demarcação ficou fora da foto, enquanto as loiras rebolaram à vontade para as câmeras. Nenhuma surpresa: A FIFA é o que é, e nós somos o que somos.)
A leitura alegorizante é quase sempre empobrecedora. Quem pousou os olhos em Walter Benjamin sabe que a alegoria é o grande divertimento do melancólico. E o melancólico é um sujeito que desistiu de intervir, construindo interpretações que, tão pronto se erguem, já são ruínas diante do que se passa. Há um poder insuspeitado nessa construção moderna de ruínas, mas elas são insuficientes quando se trata de pegar o pulso e sentir o que aflige o paciente.
Como não sou Baudelaire, minhas alegorias (o gol contra, a vaia) eram ruins, mas não porque fossem necessariamente equivocadas. Sustento que Marcelo disse algo quando botou a bola para dentro do nosso próprio gol, e que a ofensa gritada em coro tem um caráter classista (no limite, machista, e talvez até racista). No entanto, o problema não é o que a alegoria diz, e sim o que ela não diz.
O alegorista olha para o passado e esquece que o vento da história segue soprando. Para um melancólico como Benjamin, o vento coloca ruína sobre ruína, e o que chamamos de progresso é o acúmulo dos fragmentos, em meio aos quais o sujeito padece e vela sua perda irreparável. Se me fosse dado alegorizar ainda uma última vez, eu diria que o Brasil é o anjo da história que Benjamin viu em Paul Klee, só que um anjo-Janus, voltado simultaneamente para o passado repleto de destroços e o para o futuro vazio. De um lado, a lama que nos suga (não vai ter Copa!) e nos lembra a miséria do nosso estado, de outro lado a paisagem silenciosa onde florescerão os sonhos pueris da pátria amada abençoada (vai ter Copa!). O fato é que a Copa (vai ter Copa?) se dá entre esses dois extremos, num teste a exigir ininterrupta atenção, e numa afirmação insistente da realidade, diante da qual nossos signos jamais são definitivos.
O jogo se constrói paulatinamente, e não se trata de averiguar se “avançamos” ou “recuamos”, mas de notar que o futebol pode ser a abertura para o que se passa, uma espécie de fenda por onde o corpo avança e se impõe (para a frente, para trás, para os lados, parando, simulando movimentos que nunca se realizarão, realizando movimentos já realizados e outros nunca realizados). A linguagem futebolística é avessa aos ditos claros, mas não só porque se trata de um jogo não verbal: ela é realização, como sabem os teóricos, mas como sabem especialmente os que têm a bola nos pés. Quando se trata de politizar o futebol (“politizar” para o bem ou para o mal: dos Marins e Havelanges à democracia corintiana, no arco que vai do endurecimento da ditatura em 70 à abertura no final da década), descobrimos que ele é escapadiço, e diz sempre mais ou menos do que se espera dele. Se assim é, talvez seja melhor aprender com o futebol, ao invés de esperar que ele diga algo de conclusivo.
Minha ignorância futebolística é crassa. Ainda assim, a substituição de Paulinho por Fernandinho operou uma mágica, no jogo de ontem contra Camarões, e o fato é que se descobriu que podia haver algo entre a alegria que Neymar nos dá de bandeja, a simpatia irresistível de um Fred sempre meio perdido em campo, e a cabeleira inconfundível de David Luiz na zaga, com a elegância de Luiz Gustavo de permeio. Alguma coisa aconteceu.
A alegoria é a diversão e a tentação dos melancólicos. Por que não interpretar tudo como sinal de uma mudança em curso? Fiat lux: e a luz que se fez é o meio de campo entre a areia movediça do pessimismo crônico, de um lado, e a promessa de uma felicidade que nunca sai de campo, de outro. Quem sabe se os últimos episódios da política oficial nos levarão a uma era futura de maior transparência no trato da coisa pública? Quem sabe se a corrupção endêmica da sociedade brasileira (do pobre ao rico, dessa ninguém se safa) vai encontrar seu antídoto nos bilhões que escoarão alegres do pré-sal para as salas de aula? Quem sabe se um dia não precisaremos combater os cartolas, porque eles não existirão mais? Quem sabe se um dia o PMDB será coisa do passado? Quem sabe se o PT se regenera? Quem sabe se o racismo… Se o classismo… Se o meio ambiente… Se a honestidade… Se a cultura…
E agora? Acabo como? Com uma nota melancólica, ou outra, alegre? Fugir da alegoria talvez seja uma forma de escapar ao dilema, e abrir-se para o que está por vir, nem tenebroso nem feliz. Como disse o poeta da cultura, o pobre jogo “como pode se segura”. Pensando no campo (mas só no campo!), eu diria que ontem talvez tenhamos aprendido que não é preciso gastar todos os recursos defendendo-se da tragédia que insiste em mostrar os dentes, mas tampouco se deve isolar a alegria irresponsável, puramente lúdica, lá na frente.
Agora temos um meio de campo.
PS. Não é segredo que este texto deve muito a José Miguel Wisnik. Insisto que Veneno remédio é o Raízes do Brasil do século XXI. Quem viver, verá.
Ecuador vs Honduras, Curitiba, 20/7/14