Da sala vip: à distância

Leio trechos do diário do belo conde Kessler enquanto aguardo o voo numa das chamadas “salas vip” de um aeroporto brasileiro*. A cena em que ele sobe ao apartamento de Verlaine, em Paris, em meio a “carvão e roupas íntimas do operariado postas para secar”, vencendo os lances da escada que cheira a gato e a gente pobre, deixa ver o escritor não de todo tocado pelo fosso que separa as classes sociais. Não de todo tocado, mas não de todo indiferente.
Há algo estranho em Kessler, e em sua ambivalência: de um lado, o dândi desviando-se enojado das cuecas que pendem das paredes; de outro, o homem que sente a pobreza e a decrepitude que tomam Verlaine, em tudo contrastante à imagem de Rimbaud, a fixar-se jovem e enérgico na recordação do velho amigo.
Os “vips”, a despeito do fato de que pouquíssimos aqui serão possuidores de algo além de um acúmulo insano de milhas, leem, conversam, consultam computadores e tablets, comem e bebem. Num trânsito discreto, empregados recolhem guardanapos e pratos deixados sobre as mesinhas entre as poltronas.
Ninguém parece aflito. Não há aqui qualquer estremecimento. O ruído branco da conversa faz pensar num hospital em que os odores foram atenuados. Como se o mundo tivesse se extraviado por um instante, e restasse apenas o movimento imperceptível de algum agente limpante, penetrando cada reentrância da sala para esterilizá-la.
O mundo ficou na distância – talvez a distância que os “vips” buscam, mas talvez aquela distância tênue que nos separa do Outro.
* Que no Brasil o “lounge” de uma companhia aérea ainda se chame “sala vip” faz pensar na fascinação que a sigla segue a despertar num país atado ao seu passado colonial. Todo um mapa de exceções emerge e naturaliza a diferença, enquanto nos Estados Unidos o acesso à sala é um privilégio garantido pelo dinheiro (quem comprou o “direito” de lá estar ou quem embarca em classe executiva – o que dá no mesmo) ou pelo status do cliente “leal” à companhia. No Brasil, a tais possibilidades talvez se some o sentimento da diferença, a garantia de que afinal quem lá está se separa do resto, ao imaginar-se “very important”. Faz pensar, ainda, como, num país que enfrenta uma estrondosa nova classe, proliferam as formas de consumo que sinalizam a diferença, ressaltando o aspecto “diferenciado” (a palavra da vez) do produto a que têm acesso aqueles que realmente importariam.