Crítica com alma

Crítica com alma

Alfredo Bosi, sua obra e seu último aceno

 

Eu junho a Piauí publicou este artigo em que falo de Alfredo Bosi, nossa amizade e a imensa admiração que eu tinha por ele e por Ecléa Bosi. O artigo pode ser lido gratuitamente no site da revista.

Reproduzo aqui a primeira parte.

 

Não é fácil deletar o endereço de quem morreu. Fico pensativo, como se houvesse o risco de varrer a pessoa da memória. Por estes dias topei com o nome de Alfredo Bosi (1936-2021) e quando vi a anotação ao lado do e-mail não tive coragem de apagá-la. Eram as instruções enviadas por ele há mais de vinte anos, quando nos convidou a visitar a chácara em que então morava com sua mulher, Ecléa Bosi (1936-2017), em Cotia, na Região Metropolitana de São Paulo: sair da Rodovia Raposo Tavares, entrar pela Rua Basileia, manter-se à direita, entrar na Zurique e, quando chegar, escreveu ele, “tocar o sino”.

Era a primeira vez que os visitávamos, e o sino parecia uma declaração de princípios. Ali seríamos recebidos como os viandantes eram acolhidos nos mosteiros. A simplicidade franciscana do lugar era comovente (“comovente” é uma palavra que Bosi utilizava muito). A casinha de tijolos ficava no fundo do terreno, com um pequeno campo de futebol para os netos na frente e as plantas que Ecléa cultivava espalhadas por todos os cantos. Jamais esquecerei da cozinha, que tinha um ar de roça, as louças de ágata, lajotas no chão, móveis de madeira e a luz que, coalhada pelas cortinas, parecia nos transportar a outra época.

Conta-se que, aos 3 anos de idade, Simone Weil recusou um anel que lhe deram de presente, dizendo que não gostava de luxo. Ecléa narra a cena em sua introdução a uma antologia de ensaios da filósofa francesa. O pequeno relato diz muito sobre o casal Bosi: Proscrito o luxo, o que resta? Quem somos sem possuir?

Num de seus textos, Alfredo Bosi discute a ideia de “atenção” desenvolvida por Weil, para quem a vitória sobre a “coisificação” do mundo seria possível apenas com uma mente liberta das paixões, capaz de dar primazia “às figuras e às suas propriedades geométricas”. Com a imaginação livre das dispersões subjetivas, nos desfaríamos do cativeiro das veleidades pessoais, descobrindo-nos prontos à ação transformadora, de modo a recusar as engrenagens da máquina social.

Essa intrincada noção filosófica, que desconfia do amor por aquilo que possuímos, pretende fundar um mundo em que o império das coisas seja combatido. Nem por isso deveríamos deixar de prestar atenção às coisas; podemos observá-las como quem ama a graça de um mundo que não pertence a ninguém. Em outro texto, Bosi sugere que Simone Weil seguia as ideias de seu mestre Alain quando imputava ao artista a capacidade de reconhecer “as formas, as dimensões e o peso do real, tudo o que a natureza apresenta como lei imanente”.

Lembro-me de outra cena, quando, em 2008, visitávamos juntos uma exposição de Giorgio Morandi no Museu Metropolitan de Nova York. Bosi parou diante de cada uma das naturezas-mortas do pintor italiano. Aumentados pelas grossas lentes dos óculos, seus olhos míopes miravam as garrafas envoltas naquela luz leitosa que tão bem conhecem os admiradores de Morandi. Enquanto caminhávamos, ele nos falava de uma forma de atenção que tornaria únicos os objetos, ao flagrar neles a sutil organização da matéria.

Como no caso de Simone Weil, para quem a abstração matemática era parte de um exercício de contemplação do universo, o olhar humano pode experimentar, diante do mundo material, uma interminável ordem de relações numéricas, que alguns chamariam de divina. Creiamos ou não no Deus em que acreditavam os Bosi e Simone Weil, o fato é que o mundo pode nos comover sempre que nos permitimos reverenciar sua ordem natural, evitando dominá-lo, mas recusando também nos deixar dominar por ele.

Caminhar pelo museu com Bosi me fez lembrar da sua cozinha em Cotia e o que ela encerrava: uma lição sobre a contemplação e o convite a estar no mundo sem desejar – ou talvez mesmo sem precisar – possuí-lo.

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