Como luto virou verbo
Saiu na revista Época, a propósito do simpósio que o Brazil LAB organizou em homenagem a Marielle Franco, e o encontro entre Mônica Benício e Angela Davis em Princeton:
Lembro da noite de 14 de março de 2018, quando um amigo mandou a mensagem: “mataram uma vereadora do PSOL no Rio”.
Ao longo da última semana, durante o simpósio que organizamos em Princeton em homenagem a Marielle Franco no aniversário do seu assassinato, pensei várias vezes no movimento que leva o corpo a se transformar em símbolo. O anonimato da “vereadora” duraria pouco: como um rastilho, ela ganhou nome, corpo, história, até se tornar o signo de uma época.
Realizado no Brazil LAB de Princeton, o simpósio internacional reuniu acadêmicos e ativistas para discutir os feminismos negros e os perigos por que vai passando a ordem democrática no Brasil e no mundo. Mas se de tudo fica sempre um pouco, o que eu vou levar na memória é o encontro de Angela Davis e Mônica Benício.
De um lado, a filósofa e ícone do movimento negro internacional, com aquela serenidade de quem enfrentou a derrota e o risco com desassombro, ao longo de toda a vida. De outro lado, a arquiteta e ativista cuja história de amor com Marielle foi brutalmente interrompida pela morte, há apenas um ano.
Na sala em que se deu o simpósio, a dor era uma espécie de centro de tudo, silencioso e onipresente. As frases de Mônica custavam a terminar, porque o choro pegava cada palavra de roldão, criando um silêncio que quase se podia apalpar. Mas nem por isso foi difícil entender o que ela dizia. Como brincaria a própria Mônica, no dia seguinte: se houve mensagem, é frase!
O esforço de Mônica Benício por transformar o “luto” em verbo revela um movimento de transformação política e pessoal profundo. Ouvindo-a, percebe-se que duas batalhas se desenrolam ao mesmo tempo. De um lado, o esforço privado e interior para apaziguar o demônio da morte e o fantasma da perda. De outro, a luta pública por escapar do papel de “viúva de Marielle”, sem jamais recusar o poder contagiante do símbolo-Marielle.
“Marielle presente” é uma coisa para nós, cidadãs e cidadãos que admiramos a sua luta. Mas é outra para quem não pode mais esperá-la no fim do dia. O símbolo regressa a todo instante. Já o corpo, com seu calor, o toque, o cheiro, o sorriso, tudo fica para trás.
O abraço de Angela Davis em Mônica Benício não foi apenas um ponto importante na história internacional do feminismo. Foi também o reconhecimento da dor que fica pelo caminho pedindo para ser rememorada, como parte da memória coletiva que pode enlaçar uma rede interminável de Marielles, Dandaras e Marias—para lembrar o samba da Mangueira que aliás foi cantado em Princeton, com direito a Angela Davis balançando, discreta, no fundo da sala.
Os símbolos sobrevoaram o nosso encontro. Ao abrir o simpósio, Marília Librandi recordou que Carolina Maria de Jesus nascera no dia 14 de março, há mais de um século. Em sua palestra, Angela Davis falou de Carolina, lembrou do encontro que teve com Lélia Gonzalez, na década de 1980, e recordou as intelectuais negras latino-americanas, sugerindo que o sentido do coletivo não é uma abstração sempre que se evita romper a rede da memória, quando a cadeia simbólica da luta ainda brilha na fala e na ação dos que passaram, dos que cá estão, e dos que virão. Marielle não está sozinha, no balanço da memória coletiva.
“Eu sou porque nós somos” e “na ação nos encontramos” foram motes estudados no simpósio. A “interseccionalidade” implicada em ambos mostra que a prática política coletiva é capaz de transcender as identidades porque há um terreno comum na luta, que pode ser de todas e de cada um. Quando as mulheres negras se movem, o mundo inteiro se move com elas: esta, a exortação de Angela Davis lembrada na abertura.
Outro tema que atravessou o diálogo em Princeton foi a escuta e a política. Como disse Fernanda Chaves, amiga e assessora da vereadora, que estava com ela e Anderson Gomes no carro no momento da chacina, a política de Marielle se baseava no acolhimento e na possibilidade de ouvir. Quando seu trabalho com as famílias dos policiais mortos no Rio de Janeiro foi lembrado, Mônica Benício repisou que “a dor não pode ser hierarquizada”.
Para além de todas as hierarquias e de toda classificação possível, a dor regressa e há que lidar com ela. Mônica faz seu luto de diversas maneiras. Uma das mais tocantes é o jogo com a materialidade da perda. Em cada lugar que visita, ela tira uma foto de uma bonequinha, uma pequena Marielle de tecido. Mônica nos contou que ela e a companheira planejavam viajar para o exterior, quando Marielle foi morta. Em Princeton, Mariellinha posou ao lado de uma foto de Michelle Obama, que foi aluna aqui.
Os símbolos são mudos, mas talvez não estejam de todo mortos.A certa altura do simpósio, a fotógrafa Daiane Tamanaha notou que Mônica Benício olhava para o próprio braço, onde se encontra uma tatuagem com o rosto de Marielle. Na foto que daí resultou, Angela Davis está atenta à mesa-redonda em que se discutia o feminismo negro estadunidense, enquanto Mônica, ao seu lado, apenas olha para baixo, mergulhada no silêncio, fitando e acariciando a imagem resplandecente de Marielle Franco.