Baile com a morte

Acaba de sair na Revista OSESP, jun-jul 2015, a propósito de Salomé, de Richard Strauss, que está no programa da orquestra:

Salomé, de Richard Strauss, causou espécie quando estreou, em 1905, em Dresden. Conta-se que, no ano seguinte, Schoenberg levou seus alunos para assistir à estreia da ópera em solo austríaco. Na plateia, encontravam-se o novo e o consagrado, de Mahler a Puccini. Pouco depois, um estudante veria, aberta ao piano, na casa de Schoenberg, a partitura de Salomé. “Talvez daqui a vinte anos”, teria dito o futuro compositor do Pierrot Lunaire, “alguém será capaz de explicar teoricamente estas progressões harmônicas”.

O pasmo de Schoenberg se explicaria já pela primeira frase melódica de Salomé, quando as notas ascendentes do clarinete deslizam, levando de uma tonalidade a outra, deixando pelo caminho, aos pedaços, a harmonia que se desfazia diante dos olhos e ouvidos de todos.1 Aproximava-se então o momento em que, articulando-se de forma inaudita, os sons apontavam tanto para a perfeita concórdia, quanto para seu fim.

Não era ainda o serialismo, ou o atonalismo, que despontavam em sua plena potência, e no entanto a história da música ocidental parecia girar sobre seus gonzos. O terreno a trilhar, dali por diante, não admitiria mais um centro único, que polarizasse e atraísse os sons. A “colisão harmônica” que Strauss buscava desde a juventude, e cuja semente ele encontrara em Wagner, resgatava o poder do trítono, aquela “dissonância incontornável” que repousa no coração da escala diatônica.2

A possibilidade de dissolver a harmonia era um problema físico e metafísico, e o intervalo de três tons lembrava o barulho terrível que, ao fim, aguarda a marcha inelutável do progresso. Era o diabo, a tentação em sua versão moderna e fáustica: “harmonia musical temperada pela dissonância tritônica, risco no disco da vitrola de Platão em progresso”.3 Em seu manual sobre a harmonia, publicado alguns anos após a estreia da Salomé de Strauss, o ainda jovem Schoenberg, atemorizado talvez pela iminência da dissolução harmônica, esclarece: não existem “sons estranhos à harmonia, mas somente estranhos ao sistema harmônico”.4

Daí, porventura, o desejo ambíguo de dissolução e harmonia que a escuta é capaz de presentificar: as possibilidades da dissonância, que a música de Strauss expandia, anunciavam um mundo em que a desintegração parecia cada vez mais próxima, sinalizando que o século XX começara, no seu baile insistente com a morte.

No entanto, a dança com a morte era tema antigo. Nos evangelhos, Salomé, ainda não nomeada, é a filha de Herodíades e enteada de Herodes, o tetrarca da Galileia. Nos confins do Império Romano, em meio à luta dos hebreus pela definição da regra nupcial, João Batista declarara ilícita a relação conjugal de Herodes, que por isso o mantinha cativo numa cisterna – em torno da qual se desenrolará a trama de Salomé, de Strauss.

Herodes temia e admirava João Batista, e gostava de ouvi-lo na prisão. Durante um banquete, inebriado, ele pede à enteada que dance, e lhe promete em troca o que ela quiser. Salomé dança e exige a cabeça do profeta, numa bandeja. Horrorizado, o tetrarca cede, e a cabeça de João Batista é servida à moça (Mc 6:14-32).

Salomé ganharia inúmeras figurações nas artes, passando pelos gostos e códigos de tempos diversos. Mas é a peça homônima de Oscar Wilde, de 1893, na tradução do francês ao alemão, que Strauss decidiu transformar em ópera. Nela, em vigorosa reconstrução orientalista, Salomé se deixa seduzir pelo corpo entre repulsivo e belo de João Batista, que a vê como signo da perdição, filha maldita de Babilônia e Sodoma a rejeitar a luz do Cristo, que então pregava na Galileia. Lasciva, a jovem desafia o profeta, prometendo beijar-lhe a boca, o que de fato fará ao final, consumida pela “fome” e “sede” do corpo, numa cena de necrofilia que arrepiaria a Inglaterra vitoriana. Antes ainda de ser preso por atentado ao pudor e sodomia, em sua peça Wilde busca o sensualismo do Cântico dos Cânticos, embora o ósculo da princesa da Judeia fosse depositar-se nos lábios de uma cabeça inerte, no instante sublime e terrível em que o gosto acre do sangue se confunde ao amor.5

Para além de todos lugares comuns daquele fim de século, a Salomé de Wilde, inspirada nos quadros de Gustave Moreau e no conto “Herodíades” de Flaubert, expõe, na figura da mulher fatal, a proximidade entre o desejo e a morte – algo em que nos acostumamos a pensar sobretudo através da literatura, mas que a música pode também, especialmente no caso da ópera, expressar.

Na famosa “dança dos sete véus”, em que Salomé se descobre até à nudez diante do embevecido Herodes, encontra-se um verdadeiro pot-pourri dos motivos da ópera. Há quem veja neste momento apenas o seu lado kitsch, sem dar-se conta de que se trata de uma espécie de pré-história da sonoplastia e dos efeitos que mais tarde o cinema levaria às massas.

De uma forma ou outra, no final da ópera a dissonância regressa, incontornável, ressoando até nós: quando Salomé diz, exaurida, que beijou a boca defunta de João Batista, os violinos soam como um suspiro fantasmático, e a rememoração do beijo letal se dá pelo retorno dos mesmos motivos melódicos que ouvimos antes, mas que agora reaparecem no fundo de tonalidades mescladas, até chegarem ao mais impressionante dos acordes.6 Comentando a importância de Strauss para o modernismo vienense, Maurice Ravel sustentaria que o compositor de Salomé fora “o primeiro a sobrepor linhas harmonicamente incompatíveis”, e que o acorde que encerra a cena do beijo póstumo “teimosamente resiste a qualquer análise de modulação – no máximo é compreendido como o uso simultâneo de diferentes áreas tonais”.7

Em sua invectiva contra Strauss, Theodor Adorno lembrou a fase anal com que Freud compreende a dinâmica do controle e da soltura, e que estaria na base da formação de todos nós. “Socialmente”, a música de Strauss livrava-se da “estreiteza, da hipocrisia e do preconceito comezinho que Nietzsche atacara”, e ainda assim se revelava sem qualquer solidez, parente daquela “respeitabilidade pequeno-burguesa” que Adorno desprezava.8 Mal-humorado, o filósofo vê em Strauss o efeito pirotécnico e a busca do conforto, mas nós podemos perguntar o que incomoda na falta de controle de uma música que se derramava por zonas proibidas, ou por aquelas diversas “áreas tonais” a que se referia Ravel.

É curioso que o universo em que se cruzam as leis judaica e romana esperasse por um messias, que viesse para restaurar a ordem ameaçada pela vileza dos pecadores. Fitando o mais monstruoso dos descontroles, o profeta espera o salvador. A redenção, no caso, é o momento desejado em que o mundo se retificaria, e que a ópera parece contornar, como se um espírito maligno soprasse, evitando o regresso da harmonia. A morte de João Batista é a confirmação de que o desejo impera, enquanto a concórdia se torna uma ideia tão urgente quanto distante.

A música põe em cena a irresolução do conflito entre desejo e concórdia, como se através do acorde dissonante o sujeito entrasse nos “mais extremos confins da harmonia, da polifonia psicológica e da receptividade dos ouvidos modernos”, como diria mais tarde Strauss, sobre a composição de Salomé.9

Conviria lembrar, ao fim, que em sua complexa e acidentada relação com o nazismo, Strauss nunca deixaria de acreditar no poder de Wagner, “o poeta-dramaturgo e músico-filósofo” que concluíra “o desenvolvimento cultural de três mil anos ao criar a linguagem da orquestra moderna, completando assim o mito germânico e cristão em perfeitas criações dramático-musicais”.10 Escritas em 1945, finda a guerra, essas linhas dão o que pensar. A harmonia não é sempre um acordo provisório que nos mantém à beira do ruído? E como pode o desejo sobreviver, senão num pacto secreto com a morte?

Bibliography

1 Ross, Alex. “Strauss’s place in the twentieth century” in Youmans, Charles (org.). The Cambridge Companion to Richard Strauss (Cambridge: Cambridge University Press, 2010), p. 198.

2 Wisnik, José Miguel. O som e o sentido: uma outra história das músicas (São Paulo: Companhia das Letras, 1999), p. 83.

3 Ibidem, p. 147.

4 Schoenberg, Arnold. Harmonia. Trad. Marden Maluf (São Paulo: Editora Unesp, 2001), p. 452.

5 Messerli, Sylviane. “Introduction: À l’intention de ceux qui sont incapables de croire” in Wilde, Oscar. Salomé (Paris: Presses Universitaires de France, 2008), p. 25.

6 Del Mar, Norman. Richard Strauss: A Critical Commentary of His Life and Works (Ithaca: Cornell University Press, 1986), vol. 1, p. 270-279.

7 Ross, Alex. Op.cit., p. 199.

8 Adorno, Theodor. “Richard Strauss” in Perspectives of New Music (Vol. 4, n. 1, 1965), p. 14.

9 Strauss, Richard. Recollections and Reflections. Ed. Willi Schuch (Westport: Greenwood Press, 1974), p. 155.

10 Ibidem, p. 90.

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