Aula Final
“A última aula“, por Lilia Moritz Schwarcz e Luiz Schwarcz
Nicolau Sevcenko era uma pessoa inesquecível. Costumava dizer que havia nascido canhoto: gauche seria uma boa definição para ele. Diferente, na verdadeira e única acepção da palavra, ele pensava e agia de maneira única e pessoal. Fosse por sua aparência — sempre de preto, com seu cabelo amarelado e partido para o lado de uma forma que ninguém entendia, fosse por sua interpretação pessoal da vida e dos fatos presentes ou passados, Nicolau era sempre Nicolau.
Nicolau era um professor brilhante, que cativava os estudantes e colegas com suas citações eruditas, que iam da literatura aos fatos mais cotidianos e corriqueiros. Por isso, arrastava legiões de fãs aqui, na USP, e mesmo em Harvard, onde lecionava desde 2010.
Nicolau era também um pesquisador incomum, que sempre procurava, e encontrava, um ângulo inesperado, um lado da história que ninguém havia imaginado. Quando publicou Revolta da vacina (1983) pela Brasiliense, na nova coleção Tudo é História, já chamou atenção por conta da sua visão original; sempre atento e identificado com as questões que assolavam a população e machucavam seu cotidiano.
Em Literatura como missão, (1985) Nicolau colocava em diálogo Lima Barreto, Euclides da Cunha e o contexto conturbado da Primeira República. Era a primeira vez, entre nós, que um historiador estabelecia um paralelo fino entre literatura e vida política.
Com Orfeu extático na Metrópole (de 1992) aprendemos a ver um novo modernismo e a refletir sobre as ciladas do novo ideário que se montava na pauliceia do começo dos anos XX.
Para a coleção Virando Séculos, que coordenei com Laura de Mello e Souza, Nicolau escreveu um volume excepcional e que ganhou vida própria: A corrida para o século XXI.Estávamos no começo do século, em 2001, e Nicolau já dava uma de arauto — certeiro — e previa o ritmo alucinado que nos esperava.
Nicolau também participou comigo da coleção História da Vida Privada, coordenada por Fernando Novais e que contava também com a presença de Laura de Mello e Souza e Luiz Felipe de Alencastro. Sempre da sua maneira — ao revés —, Nicolau, que deveria seguir com seu volume até o final do século XX, insistiu em manter-se fiel à sua barreira dos anos 1930. Fez um volume coletivo no verdadeiro sentido da palavra e explorou mais uma vez as falácias do projeto moderno. Trapaceou com o tempo que nós, historiadores, tentamos sempre organizar.
Vi Nicolau pela última vez em Princeton, no começo de 2014, em um seminário internacional organizado por mim, Bruno Carvalho, João Biehl e Pedro Meira Monteiro. Nicolau chegou com seu jeito tímido, atento e sorridente, e simplesmente arrasou. Ele era bom em descrever o tempo, mas não para controlá-lo. Passou rapidamente do limite austero dos vinte minutos e logo chegou aos quarenta. Mas ninguém ligou. Afinal, era Nicolau que estava lá na nossa frente, mostrando imagens malucas de projetos científicos e dizendo coisas que todos queriam ouvir e nunca haviam imaginado. Nem o tempo certeiro dos relógios americanos controlava Nicolau.
Atualmente ele andava ocupado, fazendo um projeto sobre Hélio Oiticica para a coleção Perfis Brasileiros, da Companhia das Letras. Não deu tempo. Com certeza seria um Oiticica totalmente diferente daquele de quem todos nós ouvimos falar. Cheio de panos que giram, de tropicálias que dialogam com a história.
A morte súbita é sempre um pesadelo, e levou Nicolau muito antes do final da sua aula inaugural, da sua grande lição. Essa não teria mesmo data e hora para acabar.
Lilia Moritz Schwarcz
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P.S: A morte de Nicolau Sevcenko num dia já trágico para o Brasil é difícil de assimilar. O conheci no meu primeiro emprego, na editora Brasiliense, tendo encomendado dele, em 1981 ou 1982, um livro para a Tudo é História, a primeira coleção que dirigi integralmente como editor. Na ocasião eu tinha 25 ou 26 anos, e ele, 28 ou 29. Nicolau se preparava para despontar na carreira acadêmica com seu livro Literatura como missão, e eu nem sonhava em ter minha própria editora — para onde ele acabaria transferindo o livro que se originou de sua tese de doutorado e publicando tantos outros. Nicolau também ministrou a meu pedido, no auditório da FGV, um curso de história contemporânea, aberto para o grande público, parte de um projeto que foi uma das últimas realizações no meu antigo emprego. Os cursos da Brasiliense eram oferecidos para mais de trezentos alunos. Lembro bem como Nicolau magnetizava essa vasta plateia, composta por pessoas que hoje podem estar dirigindo empresas, partidos, lecionando para outras centenas de pessoas, criando a melhor arte e literatura produzidas no Brasil.
Quantos alunos brilhantes Nicolau deixou órfãos ontem? Com certeza ele se alegrava em saber que esses alunos já estão em seus postos, andando com as próprias pernas, incentivados pelo magnetismo das palavras e ensinamentos de um grande professor. A imagem de Nicolau falando para uma plateia jovem e ávida se junta em minha mente, nesse momento de despedida, à do escritor brilhante de tantas obras fundamentais. Nicolau Sevcenko partiu, mas seus livros e alunos ficaram e vão ajudar a mudar o país.
Luiz Schwarcz
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Lilia Moritz Schwarcz é professora titular no Departamento de Antropologia da USP, além de autora de O espetáculo das raças, As barbas do imperador (vencedor do prêmio Jabuti na categoria ensaio), D. João carioca (em coautoria com Spacca) e O sol do Brasil (vencedor do prêmio Jabuti na categoria biografia), entre outros.
Luiz Schwarcz é editor da Companhia das Letras e autor de Linguagem de sinais, entre outros. Ele contribui para o Blog da Companhia com uma coluna mensal chamada “Imprima-se,” sobre suas experiências como editor.