As margens do sujeito: lugar comum da psicanálise e da literatura
Saiu no Correio da APPOA, em junho de 2011:
La spécificité de l’écriture se rapporterait donc à l’absence du père.
(Jacques Derrida. “La pharmacie de Platon”, 1968)
O sonho identitário, que nos persegue sempre que as fronteiras parecem esvair-se, é uma forma de encantamento. Do ponto de vista da análise literária, perguntar por esse encantamento é interrogar a pertinência, vasculhando o lugar habitado pelos personagens, que apenas podemos reconhecer enquanto circulam pelo espaço que lhes pertence. Entretanto, a literatura fala também dos limites desse espaço, das bordas que contêm o sujeito e do lugar em que ele começa a perder-se.
A literatura é tão mais forte quanto mais nos aproxima do lugar onde o sujeito experimenta sua mais profunda impertinência, como se nenhum espaço fosse o seu. A ficção, muitas vezes, permite evocar o momento em que o sujeito chega ao limite daquilo que o encerra, ameaçando tornar-se um Outro irreconhecível. Aí, precisamente, o sujeito oscila, jogado entre a origem que ele intui e o lugar estranho que habita. Para falar dessa oscilação, que estória melhor que “A terceira margem do rio”?
O enredo, simples e profundo como quase tudo em Guimarães Rosa, traz um pai que decide construir uma canoa e abandonar a família. No entanto, ele jamais parte completamente: a canoa fica entre margens, vagando sem rumo. O pai está e não está presente. Ele permanece rondando, assombrando a família com a promessa nunca realizada de desaparecer. Um dia, responde às instâncias do filho e reaparece diante dele, convidando-o a embarcar. O filho se recusa a fazê-lo. O que sabemos, sabemo-lo pelo filho que ficou na margem, perto do pai.
Curioso que, no momento em que o pai decide de fato abandonar sua grei, ele sofra a ameaça da mãe (sabe-se quão fundamental pode ser a figura feminina no universo rosiano), que diz: “Cê vai, ocê fique, você nunca volte!” A resposta do pai é entretanto suspensa, suspendida: “nosso pai suspendeu a resposta”.[1] No fim do conto, o sentimento do filho culpado e atormentado, chamado a repor o lugar do pai, é indizível. A impossibilidade de embarcar resulta na incapacidade de reatar o círculo de um signo-pai, o que nos leva a outro nível de inefabilidade, que aponta para a geografia eminentemente existencial de Guimarães Rosa.[2]
O leitor pode intuir algo de Dante nas viagens rosianas. Sabe-se que “o sertão é o mundo”, e que o sertanejo é o sujeito abandonado entre as forças do mal e do bem. Contudo, numa diferença marcante com a trama dantesca, a cosmologia do sertão sugere o abandono de qualquer lastro metafísico, propriamente transcendente.
Como sujeito caminhante do texto (e no texto), Dante percorre um mundo que responde às hierarquias medievais. Já o sujeito caminhante de Guimarães Rosa percorre um universo em que Deus modernamente se esconde (um Deus absconditus, para recordar a fórmula célebre de Pascal), deixando, como chave para a compreensão da condição humana, a ideia do homem abandonado a si mesmo. O homem, seja o filho, o jagunço, ou a criança que se torna o adulto, deve haver-se com uma geografia do abandono, com o desterro ineludível, quando não há mais céu ou inferno para onde rumar. Inferno e céu são o espaço terreno, a lembrar o desenraizamento daquele universo que, na mente medieval, regia-se pela confiança na transcendência dos lugares. Dos lugares da siginificação, também.
Há um paraíso, há um inferno e há um sentido final que são roubados a esse sujeito propriamente moderno, para quem a transcendência não se revela como um espaço possível ou prontamente reconhecível. Para ele, a transcendência é tão-somente espectral. O Pai, como signo de origem e elemento que carrega em si a pertinência da existência – o “nosso pai” que, no conto, é também um signo de caráter –, perde-se, “diluso”, esquivo, entre as margens da significação.
É interessante que o pai seja apresentado como um teimoso. Há uma toleima, insistência incompreensível do signo em manter-se entre margens, nos escuros desse espaço intermédio que é, ao fim e ao cabo, o espaço da significação. A matéria fluvial, por sua vez, evoca o fluxo e os represamentos de uma narrativa moderna que, por moderna, não é escorreita. Trata-se de matéria em constante diluição, se nos ativermos ao campo metafórico proposto.
Mas as perguntas da literatura não podem limitar-se ao signo. É preciso interrogar o sujeito, porque ele é o que confronta o signo, numa batalha de vida e morte. O menino-narrador, na verdade um adulto-narrador que pretende compreender o instante em que a infância foi abandonada (mais um tema nitidamente rosiano), constitui-se diante de um pai que é propriamente um Outro, diante do qual o “eu” se reconhece, mas ameaça perder-se. A possibilidade de tornar-se aquele Outro marca a viagem por um espaço – para regressar ao imaginário psicanalítico – a um só tempo familiar e estranho. Na entrega sem limites ao Outro, que é o signo de pertinência, há o risco de endoidar. Momento crucial, em que a loucura irrompe no tecido do conto como uma possibilidade maldita.
Em termos classificatórios, e aceito certo mapeamento da psique humana, talvez possamos recordar, sempre que se trata dessa entrega absoluta ao Outro, a estrutura psicótica, justamente marcada por uma substituição, isto é, por algo que vai além do simples repúdio da realidade. Após uma de suas muitas sínteses do conhecimento psicanalítico datadas da década de 1920, Freud retornava à espinhosa questão das diferenças entre a neurose e a psicose:
Poderíamos esperar que, ao surgir uma psicose, ocorre algo análogo ao processo de uma neurose, embora, é claro, entre distintas instâncias na mente. Assim, poderíamos esperar que também na psicose duas etapas pudessem ser discernidas, das quais a primeira arrastaria o ego para longe, dessa vez para longe da realidade, enquanto a segunda tentaria reparar o dano causado e restabelecer as relações do indivíduo com a realidade às expensas do id. E, de fato, determinada analogia desse tipo pode ser observada em uma psicose. Aqui há igualmente duas etapas, possuindo a segunda o caráter de uma reparação. Acima disso, porém, a analogia cede a uma semelhança muito mais ampla entre os dois processos. O segundo passo da psicose, é verdade, destina-se a reparar a perda da realidade, contudo, não às expensas de uma restrição com a realidade – senão de outra maneira, mais autocrática, pela criação de uma nova realidade que não levanta mais as mesmas objeções que a antiga, que foi abandonada. O segundo passo, portanto, na neurose como na psicose, é apoiado pelas mesmas tendências. […] A neurose e a psicose diferem uma da outra muito mais em sua primeira reação introdutória do que na tentativa de reparação que a segue. Por conseguinte, a diferença inicial assim se expressa no desfecho final: na neurose, um fragmento da realidade é evitado por uma espécie de fuga, ao passo que na psicose, a fuga inicial é sucedida por uma fase ativa de remodelamento; na neurose, a obediência inicial é sucedida por uma tentativa adiada de fuga. Ou ainda, expresso de outro modo: a neurose não repudia a realidade, apenas a ignora; a psicose a repudia e tenta substituí-la. Chamamos um comportamento de “normal” ou “sadio” se ele combina certas características de ambas as reações – se repudia a realidade tão pouco quanto uma neurose, mas se depois se esforça, como faz uma psicose, por efetuar uma alteração dessa realidade. Naturalmente, esse comportamento conveniente e normal conduz à realidade do trabalho no mundo exterior; ele não se detém, como na psicose, em efetuar mudanças internas.[3]
Retornando a Guimarães Rosa, a perda dos limites que separam o menino do irreal (aquele pai fantasmático) marcaria, afinal, o esfacelamento do sujeito. Em termos de significação, e tomando o pai como signo de origem e pertinência, a possibilidade de desmanche do sujeito estaria figurada na incapacidade de parar o círculo perfeito que me transformará novamente naquele pai, que confirmará portanto que eu não sou outro, que o “eu” não é “outro”. O drama se oferece completamente, poeticamente, na recusa de embarcar.[4]
Recordemos o penúltimo parágrafo do conto, quando o pai responde ao chamado do filho, no momento em que o signo finalmente se oferece:
Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n’água, proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto – o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia… Por pavor, arrepiados os cabelos, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.[5]
O que há por trás dessa culpa que obriga ao eterno perdão, marcada, para regressar aos termos de Freud, por uma fuga insistentemente adiada? Tomado o pai como signo de pertinência e origem, a culpa revela, porventura, o interdito da hesitação. Eu não sou autorizado a hesitar, e no entanto exatamente a hesitação, bem como a recusa diante do signo em que eu deveria me reconhecer, constituem-me como sujeito, ainda que o sujeito jamais se livrará do pai, ainda depois de tê-lo abandonado, como se sabe.
A recusa do pai em sua posição ambígua, ora cá ora lá, pode provocar outras ressonâncias. O afastmento radical sugere o caminho oposto ao da substituição paterna, abrindo-se ao sujeito, entretanto, a possibilidade de reencontrar a função do pai num Outro que o explora fora de casa. No âmbito da experiência migratória, há quem imagine aí uma proximidade estrutural com a histeria.
Contardo Calligaris abordou o tema, intrigado com a ausência (ou falha) da função paterna na cultura brasileira, porquanto lhe interessasse a experiência migratória em sua totalidade:
Com efeito, o emigrante deixa o seu país de origem e com ele deixa e reprime a filiação em nome da qual é ou poderia ter sido sujeito, por razões homólogas àquelas que levam a histérica a desmentir sua própria filiação. A miséria prometida pela conjuntura sócio-econômica no país de origem, desde que ela comprometa a cidadania, vale tanto quanto, por exemplo, um discurso materno que prive o Pai da sua capacidade de sustentar simbolicamente a linhagem. Quando ele vira imigrante, abordando uma nova terra, ele solicita alguma filiação a um novo Pai que – por não ser o Pai simbólico que ele deixou – lhe aparece como Real. Entende-se porquê: o pai da linhagem é um nome ao qual nos liga uma dívida simbólica; deixá-lo e sair à procura de outro significa pedir filiação a alguém que – justamente por não ser ainda o nosso pai – encontraremos no real e com o qual talvez precise lidar no real para que nos acorde enfim reconhecimento simbólico. Resta então à histérica, como ao imigrante, a tentativa de agradar o novo Pai, e o risco de que este novo Pai peça no Real um tributo para aceitar o novo filho. A posição é incômoda, e se sabe que a histérica pode acabar escolhendo uma espécie de exílio permanente onde evita pagar ao novo pai um tributo que lhe parece sempre exorbitante. Ela se instala numa posição de alteridade a qualquer filiação, sem por isso parar de pedir ingresso. O drama é que o custo de tal exílio é a repressão do desejo que só a aceitação de uma filiação permite.[6]
Um tributo exorbitante: “estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão”. A culpa, que no idioma de Freud é também a dívida, se sustenta a partir do afastamento do signo paterno. Tal deslocamento abre, à literatura e à psicanálise, o espaço que lhes é próprio, ali onde o sujeito se constitui, na dúvida-dívida, dividido e duvidoso em relação à origem, próximo a desfazer-se sempre que o assombra demasiado a ausência da identificação plena. A fonte da identificação sem fissuras é afinal um fantasma, o Outro que se aproxima a meias, parecendo não querer ir embora jamais.
Interessante que o pai venha “da parte de além”. Eis aí uma inversão fundamental da cosmologia rosiana, com a qual a noção mesma de transcendência se põe em causa, porque o que transcende o sujeito não é nem um lugar de eleição, nem ainda um lugar fora do próprio sujeito. A transcendência, em resumo, não é o espaço do além que a cosmologia tomista trataria de mapear, na mente medieval. O universo moral habita agora o sujeito, e o “além” é um lugar interior e resvaladiço, o sertão dentro de cada qual, sujeito-rio que não encontra as margens de sua própria definição, incapaz de entregar-se ao signo de origem, que por sua vez jamais se completa diante dele. O resultado, como já notou a crítica, é o melancólico: “Sou o que não foi, o que vai ficar calado”.[7] À margem, restam o silêncio e o pensamento sobre o não ser, únicas armas possíveis diante da impossibilidade de substituir aquele que veio antes de mim.
Substituir aquele que vem antes, ensina o conto, é a morte. A literatura, como a psicanálise, permite falar da vida, que é o nome dado a esse espaço infindável – sertão do sujeito – que percorremos antes da morte, à margem da identificação plena e final que nos diz quem somos, ou quem fomos.
* Pedro Meira Monteiro é professor de literatura brasileira na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos. Autor, entre outros, de Um moralista nos trópicos (Boitempo).
[1] Rosa, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: 1988, p.32-37.
[2] A fortuna crítica rosiana é ampla. Destaco aqui os trabalhos que sigo, de Walnice Nogueira Galvão, José Miguel Wisnik e Kathrin Rosenfield. Cf. Galvão, Walnice Nogueira. Mitológica rosiana. São Paulo: Ática, 1978; Wisnik, José Miguel. “A gaia ciência”. Sem receita: ensaios e canções. São Paulo: Publifolha, 2004, p.213-239; Rosenfield, Kathrin Holzermayr. Desenveredando Rosa: a obra de J. G. Rosa e outros ensaios rosianos. Rio de Janeiro: Topbooks, 2006.
[3] Freud, Sigmund. “A perda da realidade na neurose e na psicose (1924)” in Obras psicológicas completas, vol.XIX. Ed. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p.206-207. (Ênfase minha, PMM.)
[4] Para além da jogada rimbaudiana, há aqui mais um motivo nitidamente pascaliano. No famoso diálogo (le pari), joga-se um jogo em que não é possível furtar-se à aposta. Afinal, não apostar é também apostar, porque sempre “já embarcamos”: “Ne blâmez donc pas de fausseté ceux qui ont pris un choix, car vous n’en savez rien! – ‘Non, mais je les blâmerai d’avoir fait, non ce choix, mais un choix. Car encore que celui qui prend croix et l’autre soient en pareille faute, ils sont tous deux en faute. Le juste est de ne point parier.’ Oui, mais il faut parier. Cela n’est pas volontaire, vous êtes embarqué.” Pascal, Blaise. “Pensées”. Ed. Philippe Sellier. Moralistes du XVIIe siècle. Paris: Robert Laffont, 1992, p.515.
[5] Rosa, João Guimarães, op.cit., p.37.
[6] Calligaris, Contardo. Hello Brasil! Notas de um psicanalista europeu viajando ao Brasil. São Paulo: Escuta, 2000, p.153.
[7] Rosa, João Guimarães, op.cit., p.37.