A história lá fora
Há em Princeton um Battlefield Park, espécie de sítio arqueológico-patriótico, em que se desenrolou uma das mais sangrentas batalhas da guerra da independência americana. Em janeiro de 1777, tropas inglesas se encontraram com os soldados de Washington ao norte de Trenton, hoje capital de New Jersey. Alguns dos feridos foram tratados na pequena casa dos Clarke, fazendeiros desta região em que abundavam quakers, cuja crença proibia qualquer envolvimento direto na guerra.
A Clarke House, construída por volta de 1772, abriga um pequeno museu que ontem visitei com amigos. Foi uma lição, menos pelo acervo, que faz pensar num humilde e melancólico museu de interior, que pela pessoa que lá estava. Em meio a velhos canhões, armas e objetos relacionados à batalha, encontramos um senhor de olhos profundamente azuis, parados, com uns poucos cabelos brancos compridos escorrendo pela cabeça, como sinais de uma juventude distante que resistisse a desaparecer. Ele era o guia perfeito: deixava-nos à vontade para explorar o acervo e apenas falava quando nos aproximávamos dele. No entanto, o museu era pequeno e quando menos esperávamos já estávamos próximos, e então o ouvíamos.
Seu conhecimento da batalha e da região era notável. Mas o que chamou nossa atenção foi a perfeita combinação de forma e conteúdo no que dizia. Nosso guia era um desses conhecedores da história tão comuns entre os cidadãos americanos: atento aos detalhes, capaz de desfiar uma longa lista de nomes e lugares, tudo na ponta da língua, dito com invejável segurança e nenhuma profundidade. A voz lhe saía monótona, sem que qualquer paixão se metesse ali, sobretudo sem sombra alguma de graça. Nem vem ao caso pensar em ironia, porque ela simplesmente não faz parte daquele mundo: um sorriso, uma piscadela, um duplo sentido, seriam tão estrangeiros ali quanto um quaker a quem fosse dada uma arma em meio à batalha. Aliás, aqueles pesados mosquetes foram desenhados para caçar lebres e pássaros, não para atirar em ingleses.
Sempre fico tocado quando encontro alguém assim. A ingenuidade, a candura e a credulidade fazem desses personagens criaturas doces, como se o mundo manchado lá de fora lhes fosse desconhecido, e eles fossem os representantes de uma humanidade perdida. A fala do nosso guia cobria tudo de pó, pacificava o que narrava, como se a violência fosse um dado externo ao museu, e as armas, bem como o sangue que um dia correu naquela casa, estivessem seguros no passado, aprisionados para nunca mais voltar.
A incapacidade de construir conexões de sentido, de captar a tragédia e a agonia, me faz pensar em como neste país a guerra deve sempre estar além: num passado consagrado, ou então a muitas milhas, em algum Vietnã distante. Não convém pensar na estrutura agrária que está na base das queixas dos colonos. Não cabe refletir sobre o fermento de liberalismo esclarecido que provinha da França e da própria Inglaterra. Da escravidão ou dos índios é melhor nem falar. De guerras de religião, tampouco. O mundo, na exposição cândida do nosso guia, fica preso a uma eterna superfície: nomes, datas, desencadeamentos mínimos, como se um relógio se abrisse e observássemos suas engrenagens. Mas nada de olhar para a peça inteira, e nada de se perguntar sobre o tempo. Ou sobre a história.