À deriva
Para a Andréa
O que torna um filme como À deriva uma obra de arte tão tocante? Talvez a distância e a proximidade que marcam o pulso da narrativa e, com ela, os movimentos da câmera.
Mas o que é tão distante e ao mesmo tempo tão próximo?
Uma interpretação corrente vê no filme de Heitor Dhalia o tema do incesto: o pai mal contém-se diante da filha que se torna mulher etc. No entanto, a obsessão moralizadora – o moralista não prevê a circulação do desejo no seio da família – cega o intérprete, tornando-lhe inacessível o verdadeiro tema de À deriva, que é o desejo, simplesmente. Nada mais nada menos que o desejo: puro, inalienável, ele é o que circula, o que boia do início ao fim do filme.
Entendo então porque o filme é aquático, e porque o azul é sua cor forte. Fosse outro o cenário, longe do mar, e o filme se perderia. Ou seria outro filme.
Mas há algo ainda na distância e na proximidade, a que talvez valha a pena prestar atenção. O filme se passa nos anos 80. O velho quadro do escritor frustrado diante de uma máquina portátil de escrever é revisitado, e um espectador pode perguntar-se o que seria deste filme se no lugar da máquina houvesse um laptop, ou mesmo se o isolamento da família em Búzios fosse entrecortado por chamadas de celular. Algo então seria rompido. A distância seria rompida.
À deriva se sustenta num movimento pulsante, e não sobreviveria sem o afastamento: para nós, vendo-o hoje, trata-se de um quadro distante, como se o fluxo do tempo (marcado, insisto, pelo relativo isolamento que a era digital aboliu, talvez para sempre) se alterasse, como se vivêssemos, afinal, a fábula em toda sua pureza. Once upon a time, era uma vez, il était une fois…
O tempo suspenso num passado próximo e distante (um tempo imperfeito, daí a necessária regência do verbo) é o país dos contos: nem lá nem cá, à deriva, sobrevivendo na narrativa, e apenas nela.
Arrisco-me a uma definição, que não pode deixar de ser, afinal, uma metáfora: À deriva é um disco tocando numa vitrola, lento, preciso, a agulha deslizando suavemente nos sulcos. E o braço da agulha boia, ondulante, obsedando os olhos.
3 Comments
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Que bonito o texto, Pedro.
Assisti ontem ao filme, pensando vagamente em manhãs nas quais eu saía para a praia, e só ao voltar para casa no fim da tarde descobria que segundo os adultos, “tinha me perdido.” Será que o celular abole a infância? Que o digital trava a deriva?
Uma bobagem, espero: as vezes tenho medo das nossas crianças, dos adultos que virão — tão confiantes (a praga do self-esteem), tão pouco aventureiras.
Me lembrei também de um dos Contes Moraux do Rohmer, aquele filmado na praia. Não pela praia, pelos diálogos e gestos. Pois o filme também parece ser sobre como circula o desejo, como nos comportamos diante dele.
Enfim, com a permissão do autor, vou usar esse texto em um curso de cinema que estou no processo de montar.
O digital trava a deriva…? Que pergunta difícil.
Evidentemente ainda não sabemos o que esperar das relações humanas numa era digital, mas o mundo segue sendo escandalosamente analógico, eu acho.
Sim, Rohmer é um excelente contraponto, e é possível que Dhalia o tivesse presente quando filmou À deriva.
Mas volto ao escândalo do mundo analógico: a única forma de quebrar a auto-estima falaciosa das “nossas crianças” seria lançá-las num mundo em que elas não pudessem mais se socorrer imediatamente no obscenamente familiar que é o mundo das redes de relacionamento (nome estranho, by the way…).
Aliás, fico me perguntando se não teremos algum dia uma nova geração beat, alguns malucos que por fim resolvam (re-)inventar o mundo on the road, mas sem celular.
Pulando para o grande épico dos filmes B: já imaginou se Peter Fonda tivesse um celular e pudesse chamar uma ambulância para salvar Jack Nicholson quando ele é atingido por um tiro, ao final de Easy Rider? Já pensou se Nicholson se salva, que horror seria o mundo em que afinal de contas ele teria que passar o resto de sua vida?
Em Princeton sofro muito, porque os “kids” aqui (como são insistentemente referidos os alunos, num gesto de inconsciente condescendência) estão muito longe da estrada. E quando pegam uma, sabem perfeitamente para onde vão.
O meu esforço tem sido por perdê-los, mas venho fracassando fragorosamente.
Acho que o fracasso é analógico, porque pressupõe as voltas e revoltas do caminho que separa os dois pontos: a saída e a chegada. O mundo digital é um mundo quântico da pior espécie: quando vejo, já estou onde eu supunha estar meu desejo.
Não é nem preciso ser analista para saber que não se chega ao lugar do desejo, a não ser na morte.
Esta noite talvez eu sonhe que estou dando aula para um bando de zumbis. Não sei que língua falarão, no meu sonho.
Onde se lê Jack Nicholson, deve-se ler, é claro, Denis Hopper.