A chacina da Luz

“Chacina da Luz” é uma maravilhosa exposição-instalação no Solar da Marquesa de Santos, no centro de São Paulo, e compõe-se de restos de estátuas, a maioria do século XIX, que foram depredadas numa noite de 2016 no Jardim da Luz, por um grupo de pessoas de quem pouco ou nada se sabe.

Mais que simples “defesa” do patrimônio, a instalação é uma reflexão profunda sobre o lugar da memória e o abandono no espaço público. Desfeitos, Vênus e Adônis descansam sobre os mesmos cobertores que a Prefeitura de São Paulo distribui entre os moradores de rua, para que não morram de frio. Fora do enquadramento idílico em que um dia estiveram, no Parque da Luz, as estátuas enfileiradas no chão acabam lembrando o velho tópico da glória vã, ao mesmo tempo em que replicam, inadvertidamente, a experiência do abandono extremo.

Os corpos jazem diante de um velho arquivo que somos convidados a remexer e deixar sempre aberto. Foi emocionante visitar a exposição com a curadora, a artista Giselle Beiguelman. Ouvindo-a, fiquei lembrando a lição de Derrida, para quem o “arquivo” é também aquilo que encobre um segredo. Por definição, o segredo não está arquivado. Começa aí a literatura — ou a arte, no caso desta exposição.

Ao lado do Solar, no Beco do Pinto, “Monumento Nenhum” é um belo complemento a “Chacina da Luz”. Pilhas de pedestais de estátuas destruídas e monumentos desfeitos cortam a paisagem. Foram encontrados por Giselle Beiguelman no Depósito do Departamento do Patrimônio Histórico, no Canindé.

Interessante e triste coincidência: na década de 1950, antes ainda da construção da Marginal Tietê, Carolina Maria de Jesus escrevia os seus diários na favela do Canindé… A certa altura, ela traz à página Zinho, um menino que comia carne encontrada no lixo. Carolina o deixa, horrorizada, para logo mais nos contar que “no outro dia encontraram o pretinho morto”, corpo inchado e abandonado.

O corpo desfeito: o grande segredo do arquivo da civilização.

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